quarta-feira, outubro 23

A vida que ele levou: Harold Bloom (1930-2019)

No centro das brigas de Harold Bloom estavam feministas, marxistas, lacanianos, neo-historicistas, desconstrucionistas e toda a “rede acadêmico-jornalística”, que, segundo o famoso crítico americano, planejava substituir o cânone literário por “programas de transformação social”. Não era, necessariamente, um problema com o feminismo ou com o marxismo em si. Era, na verdade, o desespero diante de uma certa visão cultural que estaria reduzindo a criação artística a um mero apêndice de visões ideológicas.

Morto na última segunda-feira, aos 89 anos, o crítico não suportava a ideia de ver os gênios de seu panteão particular transformados em instrumento político-social. William Shakespeare, por exemplo. Por mais que Bloom, um judeu nascido no bairro nova-iorquino do Bronx, identificasse o flagrante antissemitismo presente em "O mercador de Veneza", nem por isso achava que a obra deveria sair dos programas das escolas e universidades. Ou, pior ainda, que deveria ser substituída por algum livro medíocre e inofensivo, que atendesse aos padrões politicamente corretos.

Da mesma forma, criticava leituras que não privilegiassem o valor estético intrínseco das obras. Em suas aulas na Universidade Yale, uma das mais renomadas dos Estados Unidos, em vez de promover uma leitura freudiana de Shakespeare, invertia o processo, com uma leitura shakespeariana de Freud. Afinal, se o bardo inglês teria mesmo “inventado o homem” — como Bloom afirma em seu livro "Shakespeare: a invenção do humano" —, por que não buscar na fonte original? “O que vemos como psicologia freudiana é, na realidade, uma invenção shakespeariana”, disse ele em uma entrevista à
"Paris Review" em 1991. “Na maioria das vezes, Sigmund Freud apenas a codificava.” O que não significa, claro, que o médico austríaco também não fosse um escritor genial, na concepção do crítico.

Na contramão dos chamados estudos culturais, que se instalaram com força nas humanidades de seu país a partir dos anos 1960, Bloom dava muitas vezes a impressão de ser o último bastião da defesa do cânone ocidental. Em "Gênio", de 2002, por exemplo, listou “de forma arbitrária e idiossincrática” 100 exemplos de mentes criativas que se encaixariam em sua visão de escritor canônico. “Falstaff e Hamlet estão bem mais vivos do que muita gente que conheço”, escreveu ele no livro, em referência a dois personagens essenciais de Shakespeare.

Bloom tinha uma certeza inabalável — quase messiânica — de que o mundo pós-estruturalista errava ao se voltar para fora do cânone, por motivos nem sempre — segundo ele — estéticos. E, para os anticanonizadores que insistiam em relativizar o gênio “estanque” de autores como o grego Homero, o italiano Dante Alighieri, o espanhol Miguel de Cervantes, o português Luís de Camões ou o brasileiro Machado de Assis, revisando-os por contextos históricos e políticos, cunhou um termo ainda hoje difundido: a “Escola do Ressentimento”. Os tais “ressentidos” responderam que Bloom militava pelos privilegiados de sempre: homens brancos que tiveram a sorte de se encaixar nos valores de suas épocas. Bloom, porém, estava longe de ser uma figura odiada, mesmo entre os que se posicionavam do outro lado das trincheiras. Ele provocou, discutiu, atacou tendências, mas sempre colocando a paixão da leitura acima de tudo.

Bloom foi um professor admirado de ciências humanas em Yale, onde lecionou por mais de 50 anos. Capaz de devorar até 400 páginas em apenas uma hora e de recitar de cor todas as peças de Shakespeare, virou inclusive um caso raro, talvez único, de crítico que frequentou as listas de mais vendidos — por livros como "O cânone ocidental", que trouxe o conceito da “Escola do Ressentimento”, e "Como e por que ler", de 2000, que ajudou a formar muitos leitores. Como bem lembrou o obituário no jornal The New York Times, ele nunca se preocupou com o rótulo de “populista” que os best-sellers e a fama provocada pela exposição midiática lhe trouxeram.

Por aqui, sua morte foi lamentada em todos os campos, digamos, ideológicos da pesquisa literária. “Era o melhor crítico literário vivo do campo conservador”, tuitou a jornalista e crítica Juliana Cunha. “Desde a iniciação científica, pego ideias dele. Para usar do avesso, mas sempre peguei e continuarei pegando. Aqui vai um pesar sincero, diretamente da Escola do Ressentimento”, escreveu.
Bolívar Torres

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