segunda-feira, outubro 21

O desespero e a fábrica de histórias

Quando apanhei o avião em Luanda, não podia imaginar que estava a entrar numa máquina do tempo e que os onze anos que completaria dali a dois dias, em vez de me entregarem o futuro, me despejariam impiedosamente no passado. Um passado de que me desligara aos seis meses de vida e do qual não tinha memória. Abruptamente, materializaram-se as palavras que escrevia no início dos anos letivos no espaço das fichas de inscrição destinado ao local de nascimento: Fontelonga, concelho de Carrazeda de Ansiães, distrito de Bragança, locais abstratos gravados nas costas dessa outra abstração que era o meu bilhete de identidade.

De um momento para o outro, tinha à minha frente dois velhos a olharem para mim e para a minha irmã, mais alarmados do que felizes. Eram os nossos avós maternos que eu só conhecia das cartas que iam e vinham em papel e sobrescritos muito finos, by air, par avion, Para não pesarem durante o voo, explicava-me a minha mãe, e eu ficava a pensar em como é que palavras de nada podiam ter importância nas toneladas de aço do avião, feito um pássaro gigante com a barriga cheia de cartas. Espero que esta carta te vá encontrar de saúde que nós por cá todos bem, graças a Deus, era sempre assim que começavam as cartas da minha avó. A minha mãe lia-as a mim e à minha irmã, tentando traduzir para as nossas vidas modernas de colonos aqueloutras, longínquas, dos nossos familiares da Metrópole, O teu pai foi ver do gado à feira de Mirandela e à vinda teve um acidente com a égua, A maleita levou-nos os recos, A filha do Sr. Doutor ficou noiva de um engenheiro importante da Régua. E agora ali estavam, aqueles dois velhos a olharem para nós, e a minha mãe, Cumprimentem os vossos avós.

Por que é que os avós andam sempre de preto?, perguntei passados uns dias, e a resposta veio pronta, Por causa do Manelinho. O Manelinho, o único varão nascido naquela casa, morrera há mais de trinta anos com um vómito esverdeado na boca. Porta-te bem, obedece aos teus avós, ordenou a minha mãe poucas semanas depois, quando foi embora com a minha irmã, para Lisboa. O ano letivo ia começar e nas proximidades da Fontelonga não havia escola onde a minha irmã pudesse fazer o sétimo ano. Ficariam instaladas, por especial favor, em casa de familiares de amigos ou sabe deus onde, enquanto a minha mãe pediria ao IARN que nos ajudasse. O meu pai continuava em Luanda, resistindo a desacreditar que tudo ia ficar bem por lá.

Susa Monteiro
Deixaram-me com os meus avós, na casa onde eu nascera há uma década, onde, trinta e seis anos antes, a minha avó dera à luz a minha mãe, na mesma cama onde também ela viera ao mundo, uma casa de pedra que tinha quinteiro, fardos de palha, coelhos, galinhas, uma vaca de leite, um burro, uma égua, cinco porcos, gatos listados e vadios, uma casa que já havia sido abastada e a que agora apenas sobrava o confuso cansaço da pré-ruína. Os meus avós estavam doentes, empobrecidos, sozinhos.

O meu avô pouco falava comigo, afastava-se quando a minha avó queria saber como era a vida em África e eu me punha a inventar histórias, misturando o nosso quotidiano de Luanda com macacos, leões, tempestades épicas, árvores com as raízes viradas para o céu. O meu avô não gostava de histórias, gostava de bater na minha avó e nos animais.

Morreram ambos, ele primeiro, nos dois anos seguintes ao nosso regresso. É difícil acreditar que tinham então quase a minha idade atual. De nada lhes valeu a fé nas pagelas penduradas nas paredes a cada vinte centímetros, santos com coroas de espinhos, carne lancetada, pés cravados, peitos abertos e corações expostos, terrores que me cercavam de noite e que, misturados com os barulhos dos animais guardados no andar de baixo, me assombravam o sono e agravavam o medo que já tinha do escuro. Felizmente a luz acabava sempre por vencer e o dia lá vinha salvar-me dos pesadelos noturnos. Começavam então outros, menos difusos, como ter de despejar os penicos, ir buscar água à fonte nos cântaros de plástico azul, atiçar as brasas da lareira para cozer a vianda dos porcos cuja gordura me nauseava, ajudar a minha avó a fazer os curativos das feridas que o cancro lhe ia abrindo no peito. Para melhor me lamentar, socorria-me das comodidades da vida de Luanda, água corrente, banheira, candeeiros nas mesinhas de cabeceira, fogão a gás, frigorífico, e a minha avó desconfiada, Nunca vi tal, nem na casa do Doutor, para logo acrescentar, De qualquer maneira isso acabou. Tinha razão, a vida como eu a conhecia tinha acabado, agora era retornada, vestia-me com roupas desajustadas para o clima e os costumes de cá, e os miúdos juntavam-se em bando para dizerem o que ouviam aos seus pais, os retornados eram exploradores de pretos e deviam ir para a terra deles, os retornados queriam roubar empregos, os retornados drogavam-se, as retornadas eram todas umas vadias. Não me admirava que a maldade do mundo nascesse nas fragas desoladoras que cercavam a aldeia.

A minha mãe ligava todas as quartas-feiras. Muito tempo antes da hora marcada, eu já estava na taberna do Zé Tendeiro à espera que o telefone tocasse lá do cimo das várias listas telefónicas. Logo que atendia, a minha primeira pergunta era, Quando é que me vêm buscar?, e a minha mãe lá me explicava, envergonhada, as condições em que estavam a viver em Lisboa, Não tarda o pai vem de Luanda e tudo se resolverá.

O frio vinha vindo, um frio que eu não sabia possível. As ameixas amarelas acabaram, assim como os banhos no tanque de rega do Cabeço, e já nada me distraía da minha tristeza a não ser quando, antes de nos deitarmos, a minha avó, ajeitando os tições incandescentes com a tenaz de ferro, Fala-me de África, e eu inventava histórias mirabolantes. Percebi, então, que quanto mais era evidente ser mentira o que eu contava, mais a minha avó se deixava levar pelas minhas palavras. A minha avó foi a primeira leitora que tive, muitos anos antes de ter começado a escrever. Eu fui a minha segunda leitora. Se o meu corpo não podia distorcer a realidade em que eu estava, a minha cabeça, sim. De certeza que havia um tesouro escondido debaixo das escadas do fontanário, de certeza que o Matias, o velho corcunda que gostava de se sentar ao sol no adro, era um vilão foragido de um barco de piratas, de certeza que um dos animais que dormiam por baixo de mim era um príncipe embruxado e um dia eu seria capaz de quebrar o feitiço. As histórias não me libertavam da tristeza nem me amansavam o desespero, mas tornavam-nos outra coisa. E não precisavam de acabar. Foram as histórias que me salvaram. Por isso, sempre que me perguntam quando é que percebi que seria escritora, nunca hesito, Aos onze anos. Não foi bem uma escolha, tive de o ser.

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