quarta-feira, maio 13

Uma vista com janela

Vejo de um lado o computador, do outro, o Pão de Açúcar. Encontro-me no meio. Preciso me concentrar para escrever, mas devanear para a escrita fluir. Ouço pássaros e o tic-tac do prazo. Esta é minha rotina desde que iniciei esta coluna. No entanto, houve uma alteração ligeira, porém significativa, nos meses recentes. Estamos aquarentenados por precaução. A vida perdeu o ritmo de antes. Os cantos dos pássaros se prolongam e o teimoso toque do relógio mental também. Não preciso sair de casa e os compromissos usuais foram adiados por não sei quanto tempo. Tudo tornou-se mais vagaroso para quem não está à beira da morte. A vida durante a pandemia segue… até quando?

A paisagem que me contempla ou eu que contemplo a paisagem? Pequenas questões como esta, além de medianas e gigantescas, brincam de pega enquanto traço linhas. Não tenho ideia do mundo que me aguarda quando acordamos deste sono febril. Temo pelo que virá. O governo muge “E daí?” e, com sorte, permaneço na estatística em que estava antes da crise iniciar. Em comum, lutamos contra inimigos invisíveis. A diferença está no que inventamos para si. A vista não clama mais por um futuro. Sua plenitude me lembra o quadro de Dorian Gray. Para eles, coberto, para mim, descoberto.


Em Portugal, projeto Sacadas Literárias une leitores em tempo de coronavírus
A intensificação dos sentimentos confinados torna a placidez ainda mais enervante. Deixei de acompanhar o jornal. Racionalizei que se é para ver a mesma coisa, prefiro assistir a velhos episódios de “A Grande Família”. Ao menos neles a comédia é engraçada. Estamos todos ouriçados e desunidos. Estar junto é conjuntura local ou sentimental. Este embate é diário, e assim como o MMA, não aguarda dias melhores. São nestes poucos momentos calados que tudo borbulha. O canto dos pássaros serve como coro, não uma interrupção, destes pensamentos.

É inusitado como as prioridades se invertem. Comer era algo quase circunstancial na correria, algo é emergencial. Ir ao supermercado era um teste de paciência, agora é prova de fogo tanto mental quanto física. Dizer “eu te amo” evoluiu de um muxoxo assertivo para uma declaração carregada de mortalidade. Pode ser sim a última vez. Peco pelo excesso de sentimentalidade, nenhuma novidade. Mas não quero mais me restringir nisso. Todo sussurro tornou-se um estrondo. Cada pio é quase um alarme no planeta quase parado.

Em outra reconfiguração, passei a ignorar as barreiras de madeiras para o lado de fora. A pintura engoliu o enquadramento e puxa o artista junto. Como lidar com todo o mundo dentro de mim? Sinto-me mais presente num lugar donde jamais saí. Sem o véu da fugacidade, fico desprotegido de minhas reflexões. Além do almoço e de lavar a louça, tenho mais algo para fazer. Só que este fazer não é para daqui a pouco, é um este fazer que se estende. É o futuro, de novo, inconveniente. Grita através das aves: “Você vai mudar alguma coisa ou fazer parte da passagem para sempre?” Debocho de volta: “Bom, quero ser jardineiro…” “E estas reticências?”, o futuro devolve. “Ah, malditas reticências.”, e meu blefe é descoberto.

A vida não segue, ela voa. Pode pousar no seu ombro ou cagar sobre sua cabeça. Não sou bicho alado. Tenho dois pés no chão, ao contrário do governo, que tem quatro. Estão fincados, o que é um problema. Só com movimentos meus o futuro ficará menos aterrorizante. Porém como se movimentar num estado de confinamento? Talvez começar de dentro para fora, de modo a criar uma janela para minha vista interiorizada. E, quando o mundo acordar, manter concentração e devaneio em medidas saudáveis. Pombo gordo não voa, trota.]

Daniel Russell Ribas

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