segunda-feira, dezembro 28

Matulai, o vento Sul

Abacar Abubacar conhece todos os ventos. Conhece-os pelo nome, pela origem e pelo temperamento. Conhece-os melhor do que aos próprios filhos, os quais, aliás, não vê há muitos anos. Nasceu num dhow e, desde então, tem vivido mais tempo no mar do que em terra firme. Não gosta da expressão “terra firme”. Não se sente seguro em terra. Para ele, só o mar é firme.

– Quantas pessoas o senhor conhece que foram mortas a tiro estando no mar? Ou que morreram por atropelamento enquanto pescavam?

Quando anoitece, lança âncora a uma distância segura da terra, pelo menos cem metros, e só então se estende sobre a madeira rude, e dorme.

O seu sono é profundo e sem sonhos. Ao despertar pergunta aos peixes pelos ventos. Como os peixes são sábios dizem-lhe coisas que ele sempre soube. Abubacar aprecia a discreta sabedoria dos peixes.

 


Certa manhã, desperta e não vê nenhum peixe. Nenhuma ave. O silêncio cobre, como uma manta, a clara quietude das águas. Pergunta-se onde estarão os peixes. Por onde andarão os ventos. Pergunta-se se o mundo ainda existirá.

“Ou talvez eu tenha morrido”, pensa. “Talvez a morte seja isto: um mar sem peixes.”

Pela primeira vez sente medo do mar.

Senta-se à espera. No tempo imóvel, sobre o líquido inerte, escuta uma voz que parece vir de todos os lados:

– Quem está aí? – pergunta a voz.

Abubacar sobressalta-se. A voz não lhe é estranha.

– Quem está aí? – pergunta por sua vez.

– Eu perguntei primeiro – protesta a voz.

– Abacar – diz Abacar. – Abacar Abubacar.

– Abacar, o pescador?!

– Sim…

– O amigo dos ventos?

Abacar pressente na voz um leve tom de ironia. Não percebe se é troça ou elogio.

– Ninguém conhece todos os ventos – murmura, com uma ponta de irritação. – Só conheço os nossos. Nada sei dos ventos estrangeiros.

– E o que fazes aqui?

– O que faço aqui?! Eu vivo aqui. Este é o meu mar.

– Não este, Abacar. Não este mar. Ainda não.

Abacar ergue-se, muito nervoso. Alarga os olhos pelo plácido espelho cor de esmeralda. É então que a angústia lhe acerta no peito como uma seta inimiga. Não, aquele não é o mar onde nasceu e viveu a vida inteira. Tem a mesma cor e um idêntico espanto. Lá está a ilha estreita e, para além dela, o vagaroso recorte do continente. Falta-lhe, contudo, o ciciar dos ventos, o denso rumor dos peixes atravessando as correntes, o poderoso cheiro a sal e a vida que, a cada madrugada, lhe traz mais energia do que uma xícara de café.

A ilha é uma cápsula do tempo. Nada do que é presente nos alcança. Vez por outra, surgem turistas. Não lhes perguntamos de onde vêm, mas de quando. Naturalmente, vêm, todos eles, de algum instante no futuro. Porém, quando aportam aqui já não se lembram. As viagens no tempo provocam um tipo irreversível de amnésia.

Abacar conhece a doença. Transportou muitas vezes turistas tresmalhados. Olham atónitos para as rochas erguidas à flor das águas, como levíssimas peças em filigrana, delicadas rosas de pedra, e perguntam:

– Isto é possível?!

Abacar sabe que não é uma questão de possibilidade, mas de paciência. Aquelas pessoas vêm de um tempo impaciente. Não compreendem o trabalho dos séculos.

– Onde estou? – pergunta finalmente.

Parece-lhe que o ar gargalha à volta dele. O barco agita-se um pouco. Naquela água alheia, uma cópia inanimada do seu mar, Abacar sente-se como um abacateiro regressando inteiro para o interior do abacate. Compreende com horror, e com alívio, que é dele mesmo a voz em redor.

Senta-se à proa, com os pés roçando a água, e fecha os olhos. Sorri ao ouvir o vento. Conhece-o bem: é Matulai, o bom vento Sul, o que penteia as ondas, desfaz os nós do pensamento e melhora o humor das mulheres. Sorri, mesmo antes de abrir os olhos, porque sabe que está de regresso a casa. Dali a três horas atracará no Pontão. Aisha chegará com matapa de siri-siri e lenho fresco, a anca larga, o peito farto, a gargalhada insubmissa. À noite, dormirá um sono profundo, sem sonhos. E de manhã, conversará com os peixes.

José Eduardo Agualusa

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