Eu sofrera um grave acidente de incêndio e, como a área de queimadura fora muito extensa, eu ainda estava dentro dos três dias que estive entre a vida e a morte. As dores eram tais que a enfermeira me disse: “Sei que são tão fortes que justificariam morfina, mas a senhora não pode se intoxicar, tem que suportar praticamente a frio.” Foi nessa espécie de atmosfera que o telefone tocou, a enfermeira atendeu e me perguntou alto se eu podia falar com a Senhora X. Eu nem tinha força, mas como a Senhora X devia ter ouvido a enfermeira fazer a pergunta, eu não podia mais dizer que não estava em condições de querer falar. A enfermeira segurou o telefone junto de meu ouvido – minhas duas mãos também estavam enfaixadas – e eu disse “alô” à Senhora X.
O que se seguiu é que me deixa estupefata. Esta senhora, que sempre havia me tratado especialmente bem, tendo inclusive me convidado para jantar em sua casa – essa senhora, ao meu “alô”, teve, imediatamente, uma verdadeira explosão de voz que nem parecia lhe pertencer, e foi com essa voz gritante que disse:
– E eu que pensei que você só pegava fogo nos outros! E não sabia que você também pega fogo! Espero, ouviu? espero que arda bastante!
Atônita e, no entanto, não sei por quê, tranquila, respondi como para acalmar um louco:
– Não se preocupe. Está ardendo bastante.
Isso pareceu realmente acalmar a Senhora X. E, como se assegurada de que eu estava sofrendo, mudou de tom de voz e com naturalidade disse que seu marido me mandava um abraço, que ambos me desejavam uma recuperação rápida. Civilizadamente agradeci.
Mas estava surpreendida. Por que aquela manifestação súbita de um ódio profundo do qual eu nunca sequer havia suspeitado? Devia ser um ódio inconsciente, ela própria não sabia que me odiava, tanto que me convidava e demonstrava claramente sinais de agrado com minha presença.
Falei desse telefonema a uma pessoa que entende muito de alma humana, e me foi explicado que frequentemente, diante de uma desgraça súbita, acontece de vir à tona de uma pessoa o que ela tem de melhor ou o que ela tem de pior.
Sinceramente perdoei a Senhora X, não por bondade minha, mas como quem perdoa uma pessoa que não sabe o que faz.
Jamais, porém, esquecerei o timbre terrível daquela voz ao me desejar sofrimento: aquela, pois, era também uma das vozes humanas…
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
Nenhum comentário:
Postar um comentário