quinta-feira, outubro 2

Pé ante pé

Nariz pontudo, olhar agudo, gesto de veludo. Isso dito, está descrito o Sapateiro Real. Não do Rei, que aquele reino não possuía nenhum. Mas da Rainha, donas do cetro e da coroa.

E tampouco apenas dela, pois transbordava para uma só pessoa o talento do Sapateiro. Também das damas de companhia e, por vezes, de raras cortesãs e raríssimos cortesãos escolhidos pelo real dedo.


Entre esses cortesãos, eis que um dia veio a incluir-se o Grande General, assim chamado menos pela estatura, que era até das mais comezinhas, do que pelas incontáveis vitórias nos campos de batalha. Querendo justamente recompensá-lo pela última delas, e não havendo no reino mais medalhas que lhe pudessem ser presas ao peito, nem mais espaço no peito em que pudessem prender medalhas, pareceu à Rainha que homenagem condigna seria ordenar que um belo par de botas fosse para ele confeccionado pelo Sapateiro Real.

Mal sabia que, embora profissional inigualável, este pouco ou nada entendia de botas. Seus dedos hábeis estavam mais afeitos a sapatinhos delicados, babuchas, coisinhas de veludo e de cetim enfeitadas com laços e empoleiradas nos biquinhos dos saltos. Mesmo os calçados masculinos em que tão raramente se via empenhado destinavam-se à corte, e eram quase tão graciosos quanto os das damas. Botas nunca haviam saído das suas mãos.

Assim mesmo, esmerou-se. Durante dias trabalhou o couro pesado, as grossas solas, os duros saltos. Tudo lhe era alheio. Franzia-se o cenho, feriam-se os dedos. Mas o martelinho batia, as agulhas subiam e desciam. E afinal, quando as botas ficaram prontas, sapecou-lhes um brilhante par de fivelas de prata, e abriu-se ele próprio num sorriso.

Ansioso para estreá-las e não tendo nenhuma oportunidade disponível, o General tratou de providenciar uma. À primeira provocação de um vizinho inimigo, declarou inevitável a batalha. E lá se foi, com as altas botas luzidias e o chapéu emplumado, à frente dos seus soldados. Verdejava o campo que logo estaria vermelho, o inimigo erguia os mosquetes de um lado, os oficiais, desembainhavam as espadas do outro. O General deu o sinal. Os trombeteiros tocaram o ataque. Lançaram-se os soldados para a frente.

Mas, ao invés de sentir-se levado contra o adversário por heróica coragem, o General sentiu que seus pés retrocediam, levando-o inapelavelmente na direção oposta. A tropa boquiaberta viu seu líder sair correndo, de costas. E, embora sem entender a inusitada manobra militar, seguiu seu exemplo. Caíam alguns por falta de habilidade, tropeçavam outros, enquanto a maioria recuava como um bando de escorpiões, abandonando o campo de batalha sob as gargalhadas do inimigo.

Sem fôlego, sem glória e sem chapéu de plumas, sentou-se enfim no chão o General. Descalçou as botas, e os pés moveram-se livres confirmando suas suspeitas. Eram elas as responsáveis, elas que, com suas fivelas de prata e seu brilho enganoso, haviam comandado seus passos rumo à degradação.

A cabeça do Sapateiro só não rolou porque dela gostavam os pés reais. E porque contrito penitenciou-se, confessando que por falta de hábito se havia enganado com as grossas solas, costurando-as – e com quanto esmero! – de trás para a frente. Isso nunca mais voltaria a acontecer, garantiu.

E a Rainha, para mostrar-lhe que o havia perdoado, e para amansar o General, ordenou que fizesse para este outro par de calçados. Não mais botas, porém, que o reino não podia correr tamanho risco. Seriam sapatos, semelhantes àqueles usados na corte.

Dessa vez, o Sapateiro não precisou franzir o cenho nem ferir os dedos. Sapatos cortesãos era tudo o que sabia fazer. E sabia fazê-los melhor que ninguém. Em breve estariam prontos.

E em breve o General os calçou. E com eles nos pés foi plantar-se com suas tropas naquele mesmo campo de batalha que havia presenciado sua desonra. Enfileirava-se, de um lado, o inimigo, erguendo os mosquetes. Desembainhavam-se, do outro, as espadas. O General levantou o braço, dando a ordem. Os trombeteiros sopraram em seus instrumentos. As primeiras notas do toque de ataque saltaram no ar. As tropas saltaram para a frente.

Mas ao som das notas, os sapatos, feitos para a corte e preparados para os bailes, começaram a dançar. Girava o General, alternando os pés em saltitos. A tropa estarrecida, porém treinada para a obediência, mais uma vez seguiu seus passos. Oficiais e soldados rodopiaram, sozinhos, e aos pares, bailarinos de armas na mão pisoteando com os pés ágeis o campo cheio de papoulas, enquanto ao longe, cada vez mais longe, ecoavam as risadas do adversário.

Dessa vez, nem a benevolência da Rainha foi o suficiente para impedir que o Sapateiro fosse trancado na mais alta torre do reino, à espera do cadafalso.

E agora ali estava ele, sentado na pedra fria, olhando lá no alto, bem no alto, a única janela da torre, e além dela o céu azul.

Durante a tarde inteira olhou, deixando gastar-se aquele azul que talvez fosse o seu último.

E o azul aos poucos gasto fez-se violeta. E o violeta cada vez mais escuro foi cortado por uma silhueta negra, depois outra, e outra. Morcegos lançavam-se na noite. Num assomo de ternura, o Sapateiro lembrou-se da sua oficina, dos sapatinhos todos pendurados no teto sobre a sua cabeça, lado a lado, par a par, montando guarda ao seu fazer, pendentes como morcegos no sono diurno.

Lá em cima entreviu outra sombra rasgante. Então descalçou os sapatos. Com muito cuidado atou-os pelos cordões. Depois, metendo a mão por dentro de um e o polegar por dentro do outro, segurou-os bem juntos, bem firmes, suspendendo-os acima do chão.

Como se despertassem ao seu toque, os sapatos estremeceram. Devagar começaram a mover-se, adejaram como duas asas negras. Duas asas que batendo a princípio lentas, depois cada vez mais rápidas, subiram erguendo o Sapateiro. E no escuro que já invadia a torre como água num poço, o levaram até a janela cruzando com ele o céu violeta.

Marina Colasanti

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