sexta-feira, junho 6

Amor aos livros de Camilo

Velho em Londres vendendo livros na rua
“Entre as diversas moléstias significativas da minha velhice, o amor aos livros antigos – a mais dispendiosa – leva-me o dinheiro que me sobra da botica, onde os outros achaques me obrigam a fazer grandes orgias de pílulas e tisanas. E, quando cuido que me curo com as drogas e me ilustro com os arcaísmos. Arruíno o estômago e enferrujo o cérebro em uma caturrice acadêmica.
Constou-me aqui há dias que a sra. Joaquina de Villalva tinha um gigo de livros velhos entre duas pipas na adega, e que as pipas, em vez de malhaes de pau assentavam sobre missais. O meu informador denomina missais todos os livros grandes; aos pequenos chama cartilhas. Mandei perguntar à sra Joaquina se dava licença que eu visse os livros. Não só mos deixou ver; mas até mos deu todos – que escolhesse, que levasse. Examinei-os com alvoroço de bibliômano. Eles, gordurosos, úmidos, empoeirados, pareciam-me sedutores como ao leitor delicadamente sensual se lhe figura a face da mulher querida, oleosa de cold-cream, pulverizada de bismuto.
Havia sermonários latinos, um Marco Aurélio, três retóricas, muitas teologias morais, um Euclides, comentários de versões literais de Tito Lívio e Virgílio. Deixei tudo na benemérita podridão, tirante uma versão castelhana do mantuano por Diego Lopez e um muito raro “Entendimento literal e constrviçam portuguesa de todas as obras de Horacio, por industria de Francisco da Costa”, impresso em 1639.
Disse-me a dadivosa viúva de Vilhalva que os livros estavam na adega, havia mais de 30 anos.
( ...)
Saí com os livros velhos empacotados em duas bulas de 1816 e 1817, que a sra. Joaquina, com riso cético, indisciplinado, me disse serem do tempo dos Affonsinhos.
(...) Logo que cheguei a casa, entrei a folhear as páginas dos dois livros, preparado para o dissabor de encontrá-los mutilados, defeituosos, com folhas de menos, comidas pelas ratazanas colaboradoras roazes do galicismo na ruína da boa linguagem quinhentista."

(Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco (1825/1890) na introdução de “A Brasileira de Prazins”, de 1882)   

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