sexta-feira, janeiro 30

O amor na estante


A madrugada em solitude se apodera de mim como se não fosse uma estrangeira a invadir os aposentos. Eu a aceito, na feliz condição de quem está no caminho dessa entidade – incompreendida e sobranceira. Já desisti, há muito, de ousar traduzi-la, transpô-la ao cognoscível que sustenta o espírito racional da humanidade.

É no maior dos silêncios que me chegam as palavras. Capturadas de páginas inconclusas ou exigidas de uma memória da qual sou totalmente impotente, elas me cruzam em suas trajetórias irregulares e tardias, translúcidas e calmas.

Que seria de mim se não fossem esses empilhados de papéis nessa hora tão perigosa? Em que umbral me encontraria se não houvesse a existência mágica dos livros na minha jornada? Seres que me permitem inclinar-me aos penhascos, para ao menos retrair o coração, submisso, e admirar o inefável ontológico dos abismos.

Amo-os como jamais fui capaz de mensurar. A casca, capa, o invólucro já me são manifestações do pré-amor. Ah, quantos amores são como os livros! Não! Os meus amores todos são livros.

Há os que dão saudades dos personagens e dos quais não me canso de recordar a felicidade extraordinária que proporcionaram suas epifanias brilhantes (e não efêmeras). Quantas lágrimas fugiram de mim, nas últimas linhas… Como sofri, aprendi e temi aquele fim, porque o fim é sempre inevitável.

Quantos livros não descartei nas primeiras folhas: ora por serem ininteligíveis na época, ora por carregarem uma prepotência insustentável. Um sorriso se encosta nos lábios ao trazer à tona alguns desses homens semi analfabetos!

Houve também as histórias curtas, magras, fáceis de ler. Pouco foram sedimentadas dentro do corpo. Jamais traziam a finalidade de ser abrigo aos bustos construídos em minh’alma.

E mais tantos amores-aventuras que poderia mensurar. Quando se gruda o olho à letra, o pulso ao limite até o ponto final. E a invasão serena, mista de alegria e alívio.

Se eu pudesse encaixar os amores nos livros, haveria também os de autoajuda, com suas fórmulas piegas, a náusea de sua previsibilidade e simplórias senhas de felicidade. Também os clássicos, pedantes, flácidos, ensimesmados, mofados e taciturnos que a gente se obriga a ler na frustrante tentativa de pertencimento, de transbordar aos outros nossa biblioteca incorporada.

Sobrará algum livro imorredouro cá dentro, então? Com os olhos do pensamento apertados em nitidez, eis que surge minha resposta: a poesia é o meu único amor que não tem prazo. Porque ela invadiu as fronteiras dessa noite com todas as janelas escancaradas às possibilidades. Imortal, com a fulgurância comparável aos fogos de artifício, quando tenho o faiscante espírito em festa. Ela, que me tece em seus retalhos e me dá o sentido desvelado de continuar. Que aniquila o laconismo mundano do choro. A ocêanica poesia que me arrebata em segundos, alucina meus poros e me deixa cambiante. Única, retira-me da medonha sonambulia perambular da ignorância. Que joga a desesperança dos trilhos para longe de mim. Esse foi o único de todos os meus amores que se perpetuou. O amor que me extrapola em lirismos e resplandeceres, sem nomeá-los de tal forma. Poesia que conflui a soturnidade, a clareza e o mais débil contentamento em verso. És a derradeira permanência neste mundo.

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