quinta-feira, fevereiro 12

A 'Sebastiana' de Neruda

Recanto de trabalho do poeta em Valparaíso
No decreto pelo qual La Sebastiana, em Valparaíso, foi declarada Monumento Nacional, descreve que “o exterior da casa se caracteriza por possuir uma variedade de formas, cores e alturas, desenhos originados em ideias que Pablo Neruda teve para suas diversas partes, incorporando à vivenda elementos como janelas, escadas, claraboias, corrimãos, portas e quinquilharias, que foram outorgando qualidades únicas a cada espaço”. 

A casa do poeta, como as demais, foi decorada como um verdadeiro museu e recebeu parte das coleções que Neruda recolheu. Lá estão mapas antigos, pinturas, garrafas coloridas recolhidas em várias partes do mundo. Como em todas as casas, cantinho reservado para o bar, sempre com ar de bar de navio, com pouco espaço atrás do balcão, lugar reservadíssimo para o proprietário.



A ”LA SEBASTIANA”

Eu construí a casa.

A fiz primeiro de ar.
Logo subi no ar a bandeira
e a deixei pendurada
do firmamento, da estrela,
da claridade e da obscuridade.

Cimento, ferro, vidro,
eram uma fábula,
valiam mais que o trigo e como o ouro,
havia que buscar e que vender,
e assim chegou um caminhão:
baixaram sacos
e mais sacos,

a torre se agarrou à terra dura
— mas não basta, disse o construtor,
falta cimento, vidro, ferro, portas —,
e não dormi naquela noite.

Porém crescia,
cresciam as janelas
e com pouco,
com colar-lhe ao papel e trabalhar
e arremessá-la com roldana e ombro
iria crescer até chegar a ser,
até poder olhar pela janela,
e parecia que com tanto saco
pudesse ter teto e subiria
e se agarraria, por fim, à bandeira
que ainda pendurava do céus as suas cores.

Dediquei-me às portas mais baratas,
às que tinham morrido
e haviam sido retiradas de suas casas,
portas sem muro, rotas,
amontoadas em demolições,
portas já sem memória,
sem lembrança de chave,
e eu disse: “Vinde
a mim, portas perdidas:
vos darei casa e parede
e mão que bate,
oscilareis de novo abrindo a alma,
custodiareis o sono de Matilde
com vossas asas que voaram tanto.”

Então a pintura
chegou também lambendo as paredes,
as vestiu de celeste e de rosado
para que se pusessem a dançar.
Assim a torre baila,
cantam as escadas e as portas,
sobe a casa até tocar o mastro,
mas falta dinheiro:
faltam pregos,
faltam aldravas, fechaduras, mármore.
No entanto, a casa
segue subindo
e algo se passa, um pulsar
circula em suas artérias:
é talvez um serrote que navega
como um peixe na água dos sonhos
ou um martelo que pica
como aleivoso condor carpinteiro
as tábuas do pinhal que pisaremos.

Algo se passa e a vida continua.

A casa cresce e fala,
se sustenta em seus pés,
tem roupa pendurada em um andaime,
e como pelo mar a primavera
nadando como náiade marinha
beija a areia de Valparaíso,
Já não pensemos mais: esta é a casa:
já tudo o que falta será azul,
o que já necessita é florescer.

E isso é trabalho da primavera.

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