sábado, junho 20

Dinheirinho imaterial

Tem gente que herda apê, chácara, casa de praia, automóvel. Há também um número imenso que não herda nem moeda de real. Os mais azarados herdam até dívidas. Bens materiais são passíveis de inventário, contabilidade, cobranças, impostos, investimentos. A lógica financeira se apoia num trapézio de concreto armado. Sua estrutura é binária: entrada e saída, azul e vermelho, poupança e gasto.

Mas existe um outro tipo de herança que dispensa filas de cartório, escrituras, certidões, contendas familiares. Pessoal e intransferível, seu capital é imaterial, sua origem variada. Minha mãe herdou do avô, descendente de mouros, pratos decorados para pendurar na parede da sala. Hoje, aos oitenta e dois anos, mamãe volta e meia diz Eu amava meu avô Hieronides Tassiano Bellez.

Pratos decorados para pendurar na parede são bens físicos, mas o gosto por eles extrapola a materialidade. Por conta do amor pelo avô, minha mãe desenvolveu talento para decoração. O que me faz pensar Heranças imateriais tem a ver com emoções. A troca de afetos entra a aluna e a professora de português pode produzir uma adulta zelosa do idioma. A admiração de uma criança pelo vizinho marceneiro, pode fazer nascer um designer de móveis.

Meu amor pela palavra impressa surgiu do meu amor pelo meu pai que amava livros e jornais. Na atualidade, o objeto livro e o objeto jornal já não me interessam tanto. Hoje quando termino de ler, passo para frente. Não acumulo, não reverencio. A herança, no caso, é o meu amor pela leitura. Esta já extrapolou o impresso, anda sassaricando por linhas digitais do computador, kindle, celular.

Bem diferente das heranças materiais - que beneficiam famílias -, as imateriais beneficiam o coletivo. Brazucas somos herdeiros de um conglomerado de diversidades. Do samba e da bossa nova. Do gentil e do violento. Herdeiros de cinco Copas Mundiais e da derrota de 7 a 1 para os alemães. Também temos na coluna crédito, identidades poderosas: indígenas, europeias, africanas, japonesa. E outras recém-chegadas.

Todos parágrafos acima são para concluir que uma pessoa, ou uma coletividade, pode ser curta de grana e rica de cultura. Oxalá, fazendo uso criativo e generoso do capital imaterial, poderemos até juntar riquezas. O ponto de partida é valorizar o que se herda e reinvestir seja no milhão, seja no amor.

Fernanda Pompeu

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