segunda-feira, agosto 10

Palavras

As palavras são nossa porta para o mundo. Sopros frágeis de voz, mas sem elas não dizemos coisas. Nem sentimentos. “Estou sem palavras”, gaguejamos quando, numa situação imprevista, ficamos como um pescador a pé: o mar vazou, o barco se foi, ele ficou sem mar, seu chão. Assim nós nessa hora: perdemos o chão da vida. Não dá para dizer qualquer coisa, acabamos não dizendo nada. Palavras são importantes demais para serem jogadas fora.


Vivemos também entre imagens. Há algumas décadas parte da nossa cultura é audiovisual. Videogames são bom exemplo. As pessoas passam horas imersas em operações, acumulação de pontos diante de uma tela, em rigoroso recolhimento. Eventualmente lançam um “ganhei!”, e os demais, até então fora do seu mundo, voltam. A comunicação se refaz pelas palavras. São elas o mais poderoso veículo de comunicação. É verdade. Mas é pouco. São superlativamente mais do que isso.

Quando “trocamos palavras” podemos nos entender ou não. Sim, se tivermos certo entre nós o sentido que elas têm. Não, se pelo menos um dos operadores da troca o desconhecer, ou conhecer mal. Acreditamos que esse conhecimento se dá diretamente no circuito da comunicação. Sabemos ou não. As palavras estão ou não disponíveis. Circulam bem ou mal. São limpas ou ruidosas. Servem. É preciso que sirvam. Quando sabemos por quais outras podemos substituí-las, os sinônimos, passamos no teste do sentido. Visitamos as palavras “em estado de dicionário” e voltamos com uma que serve bem naquela hora. Seleção e circulação. Quem opera bem com isso domina as palavras.

Mas não sabe o que elas dizem. Porque acontece que antes de estarem no dicionário, congeladas, elas estiveram na vida. Foram inventadas. Não existiram sempre. Ocorreu que um povo, falante de uma língua, precisou nomear uma coisa, um fenômeno novo. E inventou uma palavra. Ela foi polida, usada, cantada. Viveu. Recém-nascida, uma palavra é uma festa. Abre mundos. Depois é dita de novo, de novo, banaliza-se, entra na memória. Vai para o dicionário. Vira signo. Qualquer um, não falante daquela língua, pode acessá-la. Adormeceu.

Seria de novo uma festa se pudéssemos reencontrar o momento em que nelas ainda brilhava orvalho. É possível. Os poetas brincam com elas, e de vez em quando as refrescam até seu sentido mais originário. Arriscam muito, são ousados. Os filósofos, mais temerosos, e mais seguros, olham para elas e perguntam, como para todas as coisas: quem é você? E de vez em quando, se a palavra está distraída, ela diz. E em geral nos espanta o que ela foi, para que veio, e depois esquecemos. Vamos tocar de leve algumas, só pelo seu gosto de aurora.

Por exemplo, “produção”. Não pensamos logo em economia, em técnicas, no fazer de coisas úteis? É quase certo. Mas se usarmos um pequeno artifício de estranhamento a palavra fica esquisita, e nos desafia. Assim: “pro-dução”. Nem que seja pela rima, ocorre-nos con-dução, o que carrega consigo. E daí a pouco, “aque-duto”, “via-duto”, a condução da água, a do caminho. Sobra “pro”. Essa é mais fácil: pro-curação, cuidar de algo em lugar de alguém, em outro lugar, mudar de lugar — trazer para um lugar o que não estava nele. “Pro-duzir”, então: conduzir à presença, fazer aparecer. É como os antigos gregos entendiam “verdade”: desocultação, desencobrimento, pôr na luz o que estava escondido na noite. Originariamente, “produção” significa verdade! Podíamos imaginar? No entanto, quando o percebemos, ficamos numa posição invejável para lidar com o desdém atual pela verdade, em favor da produção para consumo. Agora sabemos que na origem das nossas línguas as duas palavras disseram a mesma coisa. E são as coisas que mandam. As palavras as seguem. Por isso são tão importantes: deixam-nos ver o mundo. Podemos trabalhar com elas para recuperá-lo, quando se diz que ele se desencantou.

Outra: “glória”. No automático: fama. No entanto, essa é a tradução latina do grego doxa, que traduzimos por “opinião”, e pomos em palavras meio condenatórias, como orto-doxo, hetero-doxo, para-doxo. Mas doxa significou a presença em que algo se mostra. O intenso brilho do mundo quando se dá a nós. Um modo superlativo de aparecer. É também uma palavra do campo do fazer aparecer, do trazer à luz — da verdade. Num tempo em que a vida pode virar o reality show da fama, não é excitante pensar que continuamos lidando com a verdade, exilada pelos “pós-modernos”? Reality show, uma canção do exílio... Não é extraordinário?

Vamos trabalhar palavras. Elas são sobrecarregadas, velhas. Têm história. Podemos mergulhar nessa história e trazê-las de lá, escorrendo a água das origens, reensinando-nos a viver com elas, nelas, em lugar de usá-las como se fossem apenas entradas de dicionários. É uma aventura, uma alegria. Tentar não custa. Somos capazes. 
Marcio Tavares D'Amaral  

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