domingo, outubro 25

Jardim da Glória à beira-mar plantado

Como traduzir? mais corretamente honest. Por honesto, evidentemente, e por extensão, analogia, também por verdadeiro, autêntico, genuíno, natural, intrínseco, básico, fiel, direito, verossímil. Quem tem dessas qualidades é correto e puro. E se é assim, tem vergonha. Então é lícito verter o texto shakespeariano:

— Que horas são?

— São horas de ter vergonha.



É o que penso no dia em que completo setenta e cinco anos de vida e começo este meu quinto volume de memórias. E por que? a epígrafe. Para minha encucação durante o trabalho que empreendo, querendo ser sincero, veraz e probo. Usando brio e vergonha. Estou escrevendo no meu escritório, olhando lá fora o dia molhado, frio e gris que cobre o Aterro, a baía e, do outro lado, a linha de montanhas daqui visível — o horizonte que vai da ponta de Jurujuba à ilha da Boa Viagem. Namoro a paisagem áspera de outono que se Matisse tivesse visto traduziria com seus car vões mais compactos, seus cinza mais chumbo, seus brancos mais desérticos.

E é de hoje? esse meu namoro com a paisagem natural, civil e humana do Rio. Por mais longe que olhe dentro em mim — vejo-o presente. Essa cidade, lembro-a de sempre. Mais particularmente em quadros que ficaram fixados pela memória — indeléveis fotografias instantâneos passados. Dentro da noite de veludo azul-marinho chego de Minas e contemplo, olhos ávidos, as ruas iluminadas a gás sem ouvir o tílburi que desliza rodas de borracha ao longo do Mangue de tinta negra, minhas mãos num joelho de meu pai, num joelho amigo do dr. Duarte. Na manhã de Visconde de Figueiredo a primavera toda úmida tem gosto ácido e cheira a flores de laranjeira, presa nas mãos de tia Eugênia Ennes — cujo vulto rosa e branco, na varanda tilintante, também se dissolve como a serralheira de prata dentro do banho de ouro do dia que chegou dos lados do Estácio. Na tarde açucarada de Aristides Lobo os bondes sobem e descem, derramando dos estribos pencas de baleiros tabuleiros multicores cheios do gosto verde da hortelã, claro das tangerinas, cortante dos abacaxis e pastoso dos nugás. Na treva de São Cristóvão, janela aberta sobre o Campo, inauguro luares argênteos e descubro o bólide ciclope do Cascadura (direto) cortando a escuridão me fazendo estremecer primeira vez à revelação repentina da eterna solidão.

Esse encanto pelo Rio, eu o encontro em cada bairro que morei. Infância em Visconde de Figueiredo e Aristides Lobo. Depois Haddock Lobo e São Cristóvão. Voltei a Minas para ficar meus anos de faculdade, meus anos de indecisão. Fui à aventura do Oeste Paulista. Reconquistei minha Beira-Mar definitivamente, quando para aqui voltei no dia 10 de março de 1933. Desde meu nascimento subindo e descendo o Caminho Novo — morei vinte anos em Minas. Dois, em São Paulo. Finalmente cinquenta e três nesta Muy Leal e Heroica. Sou mineiro dos que dizem — mineiro graças a Deus! Mas por minha mãe tenho origens paulistas, montanhesas, baianas e cearenses. Por meu pai, maranhenses e outra vez cearenses. Sou um brasileiro integrado na tricromia da raça. Com tantos sangues provincianos de que me orgulho tenho aspiração a mais: quero ser ainda — carioca amador. Ao mesmo jeito de meu amigo o pernambucano Luís Jardim. E o que é? o Rio para mim. São aquelas quatro paisagens que encheram minha infância e albores da adolescência e que têm cor azul-escuro noturno, ouro rosazul e prata dos seus dias gradis; som de ondas batendo, notas argentinas de vareta raspada contra serralherias e as sete da escala do siringe de tantos tubos dos doceiros passando. E seu velho perfume de frutas, flores, folhas, madeiras, resinas dos jardins suburbanos, da subida da Tijuca, das chácaras de São Clemente, das maresias da baía e dos ares salgados de Copacabana. A permanência dessa vida passada que me entrou pelos olhos ouvidos narizes é que ponho nesta minha Glória para onde mudei com o casamento, a 28 de junho de 1943. Antes eu tinha morado em Copacabana, Tijuca, Ipanema, Urca e Laranjeiras.* Sempre pondo nesses bairros minhas impressões meninas. 

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