sexta-feira, outubro 30

Primeiras leituras

A primeira sentença cujo segredo consegui decifrar até o fim dava a mim uma importância que a psicanálise explica: "A bola é de Paulo". Estava escrito debaixo do cartão colorido, na parede do primeiro ano primário do Grupo Barão do Rio Branco. Naquele tempo, o trabalho maior da professora era fazer com que olhássemos para a parte inferior do cartão, onde estavam as letras misteriosas, e não para cima, onde se estampava a figura do menino de calção azul e do cachorrinho correndo atrás da bola, vendo-se mais longe uma casa rodeada de árvores e de cuja chaminé saía uma fumacinha feliz. Aprender é uma mutilação.
Jan Steen
Só no quarto ano trocamos os livros ilustrados por um volume mais grosso, sem enfeites: era a antologia de Olavo Bilac e Manuel Bonfim. Já a essa altura, sem contar as silabadas, líamos correntemente. Mistério era descobrir por que motivo tanta gente havia escrito tanta coisa sem graça. Logo na primeira página, embirrei com o tal de Machado de Assis. Aquele lobriguei luz por baixo da porta me aborreceu. Lobriguei lembrava lombriga; lombriga lembrava vermífugo... Não topei Machado de Assis, a não ser aquele diabo velho, sentado entre dois sacos de moedas.

No exame de admissão, tive a sorte de ler e analisar gramaticalmente um trecho de Coelho Neto que sabia de cor: "Selva augusta, de velhos troncos intactos, jamais ferida pelo gume dos ferros...".Veio depois o ginásio, no qual considerava o florilégio um livro à parte, encapado no papel mais bonito, para contrabalançar o volume de matemática de Jácomo Stavale. Eram as flores que enfeitavam as horas de estudo, compridas e desertas Com o tempo, Machado de Assis foi melhorando de estilo e de ideias. Vez por outra, no entanto, dava para escrever frases intransponíveis como esta: "O destino é o seu próprio contrarregra". Durante muitos anos, todas as vezes que deixava de entender uma situação, repetia comigo a fórmula incompreensível: "O destino é o seu próprio contrarregra"! Duro era encontrar motivos que justificassem nossa admiração por Rui Barbosa, o homem mais inteligente do mundo. Bonito mesmo era a última corrida de touros em Salvaterra, que não é de Alexandre Herculano, como lembram os ingratos, mas de Rebelo da Silva. Bonito era o sertanejo, antes de tudo, um forte. Bonito era o suave milagre ("longos são os caminhos da Galiléia e curta a piedade dos homens").

Quase tão bonito era o cerco de Leyde, com aquela dúvida atroz, que permaneceu até hoje, de saber se o mar era o único túmulo digno de um almirante bátavo ou batavo. Bonito era a virgem dos lábios de mel. Bonito foi o descobrimento de O coração de d'Amicis. Bonito foi quando achei na antologia de Carvalho Mesquita uma poesia esquisita, a história de uma boneca de olhos de conta cheinha de lã, que rolou na sarjeta e foi levada pelo homem do lixo, coberta de lama, nuinha, como quis Nosso Senhor; Jorge de Lima foi o meu primeiro frisson nouveau. Feio foi o que veio depois. A vida não é antológica, não tem gramática, não tem adjetivos bonitos, não tem pontuação. Foi o que aprendi um século mais tarde em um livro besta.
Paulo Mendes Campos

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