quarta-feira, dezembro 20

Clássicos

Escassas disciplinas haverá de maior interesse que a etimologia: isto se deve às imprevisíveis transformações do sentido primitivo das palavras, ao longo do tempo. Dadas essas transformações, que podem atingir as raias do paradoxal, de nada ou de pouquíssimo nos servirá para o esclarecimento de um conceito a origem de uma palavra. Saber que cálculo, em latim, quer dizer "pedrinha" e que os pitagóricos as usaram antes da invenção dos números, não nos permitem dominar os mistérios da álgebra; saber que hipócrita era actor, e pessoa, máscara, não é nenhum instrumento valioso para o estudo da ética. Analogamente, para fixar o que hoje em dia entendemos por clássico, é inútil saber que esse adjectivo descenda do latim classis, frota, que a seguir ganharia o sentido de ordem. (De passagem, recordemos a formação análoga de ship-shape.)

O que é, agora, um livro clássico? Tenho à mão as definições de Eliot, de Arnold e de Sainte-Beuve, sem dúvida razoáveis e luminosas, e ser-me-ia muito grato estar de acordo com esses ilustres autores, mas não vou consultá-los. Já completei sessenta e tantos anos; na minha idade, as coincidências ou as novidades importam menos do que aquilo que julgamos verdadeiro. Limitar-me-ei , portanto, a declarar o que sobre esse ponto tenho pensado.


O meu primeiro estímulo foi uma História da Literatura Chinesa (1901) de Herbert Allen Giles. No seu capítulo segundo li que um dos cinco textos canônicos que Confúcio promulgou é o Livro das Transformações ou I Ching, feito de 64 hexagramas, que esgotam as possíveis combinações de duas linhas inteiras. Um dos esquemas, por exemplo, consta de duas linhas inteiras, de uma partida, e de três inteiras, verticalmente dispostas . Um imperador pré-histórico tê-los-ia descoberto na casca de uma das tartarugas sagradas. Leibniz julgou ver nos hexagramas um sistema binário de numeração; outros, uma filosofia enigmática; outros, como Wilhelm, um instrumento para a adivinhação do futuro, visto que as 64 figuras correspondem às 64 fases de qualquer empreendimento ou processo; outros ainda, um vocabulário de certa tribo; outros, um calendário. Lembro-me de que Xul Solar costumava reconstruir esse texto com palitos ou fósforos. Para os estrangeiros, o Livro das Transformações corre o risco de parecer uma mera chinoiserie; mas gerações milenares de homens cultíssimos têm-no lido e relido com devoção e continuarão a lê-lo. Confúcio declarou aos seus discípulos que se o destino lhe oferecesse mais cem anos de vida, consagraria metade deles ao seu estudo e ao dos comentários, ou alas.

Deliberadamente escolhi um exemplo extremo, uma leitura que reclama um acto de fé. Chego, agora, à minha tese. Clássico é aquele livro que uma nação ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler como se nas suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e capaz de interpretações sem fim. Previsivelmente, essas decisões variam. Para os Alemães e os Austríacos, o Fausto é uma obra genial; para outros, uma das mais famosas formas do tédio, como o segundo Paraíso de Milton ou a obra de Rabelais. Livros como o Livro de Job, A Divina Comédia”, Macbeth (e, para mim, algumas das sagas do Norte) prometem uma longa imortalidade, mas nada sabemos do futuro, esalvo que diferirá do presente.Uma preferência pode muito bem ser uma superstição.


Não tenho vocação de iconoclasta. Pelos anos trinta, sob a influência de Macedónio Fernández, acreditava que a beleza é privilégio de uns poucos autores; agora sei que é comum e que nos espreita nas casuais páginas do medíocre ou num diálogo de rua. Assim, o meu desconhecimento das letras malaias ou húngaras é total, mas tenho a certeza de que se o tempo me oferecesse a oportunidade para o seu estudo, iria encontrar nelas todos os alimentos que requer o espírito . Além das barreiras linguísticas, intervêm as barreiras políticas ou geográficas. Burns é um clássico na Escócia; no sul do Tweed, interessa menos que Dunbar ou que Stevenson. A glória de um poeta depende, em suma, da excitação ou da apatia das gerações de homens anônimos que a põem à prova, na solidão das bibliotecas.

As emoções que a literatura suscita são talvez eternas, mas os meios têm constantemente de variar, nem que seja de um modo levíssimo, para não perderem a sua virtude. Vão-se gastando à medida que os reconhece o leitor Daí o perigo de se afirmar que existem obras clássicas e que o serão para sempre.

Cada qual descrê da sua arte e dos seus artifícios. Eu, que me resignei a pôr em dúvida a indefinida perduração de Voltaire ou Shakespeare, acredito (nesta tarde, num dos últimos dias de 1965) na de Schopenhauer e na de Berkeley.

Clássico não é um livro (repito-o) que necessariamente possua tais ou tais méritos; é um livro que as gerações dos homens, instadas por diversas razões, lêem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade.

Jorge Luis Borges

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