sábado, fevereiro 24

Assim começa o livro...

Minha vida


Para Donizete Galvão

Agora tem um ano que mudamos para a nossa casa no Paraíso. Ela não está pronta ainda. Falta emboçar as paredes de fora e pintar as de dentro, mas, orgulhoso, meu pai fala que pelo menos não precisamos mais ter medo de ficar sem dinheiro no fim do mês para pagar o aluguel.

Uma correria danada durante a construção. Todos ajudaram. No dia de bater a laje, os colegas do meu irmão da Manufatora organizaram um mutirão. Parecia um caminho de formiga: lá embaixo, os que misturavam areia, cimento, pedra‑brita e água; lá em cima, os que espalhavam a massa sobre o madeirame; e, entre uns e outros, os baldes, transbordando, passavam de mão em mão até alcançar a escada. Eu mesmo, nesse dia, fiquei numa lufa‑lufa sem fim: montado na bicicleta Philips, freio contrapedal, pneu‑balão, que meu pai tinha comprado de segunda mão para mim, emendei várias viagens entre a Vila Teresa e o Paraíso, carregando sacos de pão com molho de tomate e garra
fões de quissuco que minha mãe e minha irmã faziam.

Aquilo lembrava mesmo um caminho de formigas, que, depois que o sol morre, eu e meu pai combatemos nos altos dos pastos. São cabeçudas, que arrancam sangue da gente, as enfezadas. Nosso bairro ainda não tem luz. A água tiramos de uma cisterna de vinte metros de fundura, com uma bomba Marumby. Todos nós revezamos para garantir o banho e para minha mãe cozinhar e lavar roupa para fora. Hoje são dez trouxas, mas já foram umas quinze por semana.

Eu sinto falta da Vila Teresa. Quando no ano passado o caminhão encostou para levar a mudança, corri para o quintalzinho, onde vivia em camaradagem com lesmas, grilos, paquinhas, minhocas e até um sapo‑boi, na estação das águas, e abri o berreiro. Ali passei os melhores anos da minha vida, brincando de bola no campinho, de pique, indo à escola… Eu tinha um gato, branquinho branquinho, de rabo assustado, chamado Ronrom. Ele veio preso dentro de um saco de estopa, porque falaram que não podia ver o caminho, senão voltava para a casa antiga. Durante o trajeto, preocupado se ele estava sentindo falta de ar deixei que pusesse a cabeça para fora. Bastou a gente chegar no Paraíso e ele sumiu. Passei vários dias andando de um lado para o outro, especulando sobre ele, mas nunca mais ouvimos o miado do Ronrom. Ainda hoje penso que, se não tivesse deixado ele olhar a paisagem…

Mas minha mãe disse que os gatos são assim mesmo, mal-agradecidos, e prometeu me dar um cachorro de presente de aniversário. Ele vai chamar Joli, um nome bonito que ouvi na praça Santa Rita, onde meu pai vende pipoca. Ele tem um carrinho verde e, de vez em quando, me deixa tomando conta para eu poder aprender a não ter medo de trabalho. Apareceu lá certa vez um adestrador com um pastor‑alemão e o bitelo só faltava falar, porque entender, ele entendia tudo. O homem mandava ele deitar, rolar, sentar, ficar paradinho feito estátua, buscar um pedaço de pau lá‑longe, e todos batiam palmas, encantados. Só quando pediu para tirar o chapéu do meu pai é que não gostei, porque ele levou um susto e quase caiu de costas e o povo morreu de rir (eu também, mas disfarcei). Esse pastor‑alemão é que chamava Joli.

Está sendo difícil adaptar aqui, porque antes a gente vivia num cortiço, mas com água encanada e luz elétrica, e a rua, calçada de paralelepípedo, era perto do Centro. Atravessávamos a ponte nova e já estávamos na praça Rui Barbosa, onde meu irmão e minha irmã rodavam no sábado à noite. Lá estão os dois cinemas da cidade, a padaria mais bonita, a maior lanchonete, os bancos e, para tristeza do meu pai, coitado, o melhor ponto para vender pipoca, ocupado pelo xará dele, seu Sebastião Lopes. A praça Santa Rita não oferece nada, só a missa da igreja Matriz e a fonte‑luminosa. Mas o lugar, escuro, por causa das árvores que escondem a iluminação dos postes, só acolhe quem não presta, como diz a minha mãe. Imagina então a freguesia do meu pai… Mas na Vila Teresa também havia inconvenientes. O correio de casas, muito perto do rio Pomba, ficava coberto pelas águas quando vinha a enchente.

A minha irmã detesta o Paraíso, porque é longe e feio. Na hora de trabalhar, ela tem que ir a pé até o Beira‑Rio para pegar um ônibus. Ela acorda antes do sol e desce a morraria xingando e lamentando o dia em que nasceu. Ela reclama da poeirama, na estiagem, e do barro, na época das chuvas. E vive ameaçando que um dia casa com alguém só para ir embora. Aí minha mãe fica brava, porque ela fala que quis sair da Vila Teresa para dar uma vida mais digna para os filhos, mas principalmente para minha irmã, onde já se viu criar uma menina no meio de marginais e mulheres‑da‑vida? Meu irmão entra na discussão e acusa minha irmã de ser metida, que ela tem um rei na barriga e que, em vez de louvar a família, cospe no prato que come. E meu pai, que não gosta de confusão, começa a assobiar, a cantar, sai de fininho, e só volta quando colocaram uma pedra sobre o assunto.

Agora, que estou terminando o primário, meu pai avisou que vai me inscrever no Senai, para eu poder aprender uma profissão.Ele quer que eu seja torneiro‑mecânico que nem meu irmão, e sonha em um dia a gente ir para São Paulo trabalhar nas fábricas de carro, que é onde está o futuro, ele diz. A minha mãe chora só de pensar nisso, porque por ela nós nunca vamos nos separar. Mas meu irmão já recebeu até proposta de emprego em Diadema, que, dizem, é longe. E minha irmã está namorando firme e deve casar mesmo, não demora muito. Eu fico triste, porque só vai restar eu e devo seguir também para fora. Mas eu não queria ser torneiro‑mecânico, queria mesmo era ser bancário do Banco do Brasil, que nem o marido da minha professora, dona Aurora.

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