quarta-feira, dezembro 5

Os transparentes

– ainda me diz qual é a cor desse fogo…

o Cego falou em direcção à mão do miúdo que lhe segurava o corpo pelo braço, os dois num medo de estarem quietos para não serem engolidos pelas enormes línguas de fogo que saíam do chão a perseguir o céu de Luanda

– se eu soubesse explicar a cor do fogo, mais-velho, eu era um poeta desses de falar poemas

com voz hipnotizada o VendedorDeConchas acompanhava as tendências da temperatura e guiava o Cego por entre caminhos mais ou menos seguros onde a água jorrante dos canos rebentados fazia corredor para quem se atrevia a circular por entre a selva de labaredas que o vento açoitava

– te peço, vê você que tens vistas abertas, eu estou sentir na pele, mas quero ainda imaginar na cor desse fogo

o Cego parecia implorar numa voz habituada a dar mais ordens que carícias, o VendedorDeConchas sentiu que era falta de respeito não responder àquela dúvida tão concreta que pedia, numa voz de carinho, uma simples informação cromática,

embora difícil e talvez impossível

o miúdo puxou de dentro de si umas lágrimas quentes que o levassem até à infância porque era aí, nesse reino desprevenido de pensamentos, que uma resposta florida poderia nascer, viva e fiel ao que via

– não me deixe morrer sem saber a cor dessa luz quente

as labaredas gritavam com força e mesmo quem fosse cego de ver devia sentir uma sensação amarela de invocar memórias, peixe grelhado com feijão de óleo de palma, um sol quente de praia ao meio-dia, ou o dia em que o ácido da bateria lhe roubou a animação de ver o mundo

– mais-velho, estou a esperar um voz de criança para lhe dar uma resposta

vista de perto ou de longe, a noite era uma trança em negrume e clausura, a pele de um bicho nocturno pingando lama pelo corpo, havia estrelas em brilho tímido no céu, torpor de certa maresia e as conchas na areia a estalar um calor excessivo, os corpos das pessoas em cremação involuntária e a cidade, sonâmbula, chorava sem que a lua a aconchegasse

o Cego tremeu os lábios num sorriso triste

– não demora, candengue, a nossa vida está quase grelhada

as nuvens longe, o sol ausente, as mães gritando pelos filhos e os filhos cegos não viram a luz fátua dessa cidade a transpirar sob o manto encarniçado, preparando-se para receber na pele uma profunda noite escura – como só o fogo pode ensinar

as línguas e as labaredas do inferno distendido numa caminhada visceral de animal cansado, redondo e resoluto, fugindo ao caçador na vontade renovada de ir mais longe, de queimar mais, de causar mais ardor e, exausto, buscar a queima de corpos em perda de ritmia humana, harmonia respirada, mãos que acariciavam cabelos e crânios alegres numa cidade onde, durante séculos, o amor tinha descoberto, entre brumas de brutalidade

um ou outro coração para habitar

– mais-velho, qual era mesmo a pergunta?

a cidade ensanguentada, desde as suas raízes ao alto dos prédios, era forçada a inclinar-se para a morte e as flechas anunciadoras do seu passamento não eram flechas secas mas dardos flamejantes que o seu corpo, em urros, acolhia em jeito de destino adivinhado

e o velho repetiu a sua fala desesperada

– me diz só a cor desse fogo..
.
Ondjaki, "Os transparentes"

Nenhum comentário:

Postar um comentário