terça-feira, maio 7

Assim começa o livro...

Ramon Berenguer de Cabanellas y Puigmal já era célebre, quando, por fusão de duas turmas, passou a ser meu colega no 6.º ano dos liceus. As suas calmas e sonhadoras extravagâncias, o seu ar de senhor de idade, o mistério adulto de que rodeava a sua figura pequena e atlética, a sua profunda convicção de que, desde o século XII ou XIII, a Espanha devia à sua família o condado de Barcelona, as pergun­tas absurdas, feitas com o ar mais convicto e ingénuo do mundo, com que ele era o terror dos professores inseguros, e o seu famoso sistema filosófico que tudo explicava e o dispensava, «graças ao con­trole das energias do cérebro», de estudar as lições (salvo em casos de última emergência), tudo isto não fazia dele um ídolo nem um chefe, mas um ente respeitadíssimo, apesar da ironia com que todos o apontavam. Uma vez, numa aula de filosofia (o professor era um pobre diabo, muito lendário pela degradação intelectual a que che­gara, e a quem, certo dia, na indisciplina ruidosa que eram essas aulas, demonstrámos o argumento de Diógenes arrastando todas as carteiras, sentados nelas, para os vários cantos da sala), D. Ramon levantou-se, e objectou que todos os seres vivos tinham alma, o que, segundo as regras da ciência, era uma verdade, e não um ponto controverso da especulação filosófica. Fez-se um silêncio de expec­tativa risonha. E o professor, debruçando sobre a secretária os bigo­des pendentes e amarelados, perguntou-lhe: - Quais regras da ciên­cia? - E ele, entreabrindo os lábios finos que nunca se sabia quando sorriam ou se apertavam de contrariedade, respondeu: - A observa­ção e a experimentação. - Ah, muito bem, e como foi que o senhor observou e experimentou a alma dos animais? - Como, senhor dou­tor? Pessoalmente -. E foi uma gargalhada geral. Ficou imperturbá­vel. - Pessoalmente? - repetiu o professor. - Sim senhor.Fotografando a morte de um gafanhoto -. Nova gargalhada. - Um gafanhoto? E o que deu a fotografia? - continuou o professor como que desperto da sua sonolência costumeira. - A fotografia, senhor doutor, foi tirada por um irmão meu, enquanto eu matava o gafa­nhoto. Mas de modo que se visse a alma passar. E, nela, vê-se niti­damente a alma subindo ao céu. - A alma do gafanhoto, a alma do gafanhoto -, repetíamos todos por entre as risadas. E ele, circunva­gando um olhar por sobre as nossas cabeças, afirmou: - Sim, a alma do gafanhoto subindo ao céu -. O professor riu também, como nunca o tínhamos visto rir: - Essa é boa, sr. Puigmal, essa é muito boa. Subindo ao céu? Ah, ah, ah. E como subia ela? - Em espiral, sr. Doutor -. Foi um charivari de riso. Ele levantou a mão, solici­tando silêncio; o rosto enublou-se-lhe de um ar muito compungido, e disse: - Perdão, eu equivoquei-me -. Todos ficaram suspensos da pausa que se seguiu; ele ia, num golpe de teatro, confessar a brin­cadeira. - Equivoquei-me, cometi um lapso, não era em espiral, era em hélice que ela subia -. E sentou-se. Foi constrangido o riso que se seguiu. O professor enfureceu-se: - E essa fotografia onde está? Tem-na aí consigo? Tem? Passe-a para cá -. O Puigmal levantou-se muito digno: - Tenho, sim senhor, mas não há lei nenhuma que possa obrigar um cientista a revelar os documentos das suas pes­quisas, enquanto não estiverem concluídas -. Os nossos olhares iam de um para o outro. - Não há? Não há? Pois sou eu quem manda. Eu! Ouviu bem? Eu! -. Nunca o tínhamos visto assim. - Não posso, nem devo, até porque as experiências não me pertencem, mas a meu irmão também. - Ah não pertencem? Não lhe pertencem, por­que o senhor é um intrujão. - O senhor doutor ofende-me sem necessidade. Mas todos os cientistas esperam sempre a hora de serem mártires. Peço licença para me retirar -. A esta altura o silên­cio e a imobilidade eram totais. - Pede-me licença? Pede-me licença? Eu é que o ponho na rua, e vou participar do senhor. Saia! Ponha­-se lá fora! -. Ramon ajustou o fato, saiu da carteira, passou por entre as filas, e, ao pé da porta, voltou-se para dizer: - É uma injustiça que o senhor comete. Eu fotografei, com meu irmão, a alma do gafa­nhoto. Mas nem teria sido preciso senão como documento. Porque eu vi-a -. E, abrindo a porta com a sua mansidão, saiu. Alguns ten­taram rir-se. Todos estávamos perplexos. Mas qual não foi o nosso espanto, ao perceber que o professor chorava: - A mim... Isto só a mim... E se eu tivesse feito o mesmo com a Alicinha, quando ela morria, quem sabe, quem sabe... -. A Alicinha era uma filha dele, todos sabiam, que morrera já crescida, e sobre a qual, nos seus devaneios, às vezes dissertava em aula. Felizmente, a campainha veio tirar-nos do embaraço. E corremos para o pátio, onde Puigmal se passeava de mãos atrás das costas. As opiniões dividiam-se: ele exagerara na brincadeira, aquilo era a sério, não era... Fizemos um apertado círculo à volta dele. E o Mesquita, que era o sempre reeleito chefe de turma, pelo prestígio das suas aventuras amorosas (era amante de uma mulher casada, e que não era a primeira, não), plan­tou-se na frente dele, e perguntou: - Puigmal, essa do gafanhoto... tu inventaste para gozar o gajo? - Ele levantou os olhos indiferentes e claros na face quadrada e mate, e repetiu: - Eu vi. - Viste o... - disse o Mesquita. - Não, isso não vi. Mas a alma do gafanhoto eu vi -. O Mesquita ergueu a mão, com o ar de quem significava que o que ele fazia ao velho Torres não lhe fazia a ele. Mas baixou-a, talvez pensando que um dos poderes do Puigmal era saber luta, e arris­cava a sua autoridade ante demasiado público. E disse: - Tu juras que é verdade essa história? - Claro que juro, e pelo que vocês quiserem. E é o que repetirei ao reitor, se ele me chamar. Mas não chama, que o Torres não participou de mim -. A expectativa desperdiçou-se na discussão de se o professor participaria ou não. E a campainha con­vocou-nos para a aula seguinte, a última da tarde. 

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