quarta-feira, maio 29

Confissão de um viciado em livros

Tenho uma biblioteca de tamanho considerável. Apesar de ocupar bastante espaço, prova-se mais do que passatempo. É bem útil em meu trabalho como revisor e preparador de textos. Também está sempre à mão de minha namorada quando ela necessita… jogar algo em minha direção quando está com raiva. Fico puto, que é o objetivo dela. Em suma, sou um bibliófilo.

Somos ratos de sebo e livreiros de rua. De longe, identificamos um de meus pares. O tipo raramente pergunta por um título. Ele vistoria o local, como um detetive que fuma calmo um cachimbo imaginário. Quando algo salta aos olhos, passa-se à inspeção. Além da obra, verifica-se o estado físico do material. A edição em si também contribui: seu histórico, curiosidades que só aquele exemplar trará. Dedicatórias longas e rasuras sempre se destacam para mim. São narrativas dentro da narrativa: observações, grifos, até críticas improvisadas inscritas para alertar o próximo leitor do que pode vir a encarar.

Coleções específicas e artes de capa são outros elementos nesta contabilidade. Adoro as edições da Círculo do Livro. Quando a capa de um destes é ruim, é uma delícia. Tenho um exemplar de “Morangos Mofados”, de Caio Fernando Abreu, cuja capa é um jovem louro em uma pose que remete a aplicativos de namoro-sexo. (Nota: também possuo um exemplar da Brasiliense, anterior às alterações no texto que o autor realizou para o relançamento.)

Nunca há livros demais para um amante desta estirpe. Há aquele livro que não foi lido, a edição não manuseada por suas mãos, as surpresas que um título sumido de catálogo abriga. É uma adição cuja próxima dose virá antes mesmo que os efeitos da anterior sejam levados às traças. Livros levam a livros, todo mundo sabe disso. Joãozinho Trinta cunhou “Nada se cria, tudo se copia.” Para um bibliófilo, a versão adequada seria: “Nada se lê em um dia, tudo se lê em uma vida.”

O bibliófilo não está para brincadeiras. Não é um passageiro das letras, que busca um objeto de distração. O bibliófilo quer um novo ídolo para adoração. Mostrar aos compadres e comadres, ostentar o achado e ser capaz de citar trechos do mesmo para a roda enquanto os parceiros no crime salivam. A leitura e o objeto livro são prêmios que nunca desgastam. Bom, o livro físico sofre os efeitos do tempo e da conservação, mas vá dizer isso para um caçador de obras. Ele se transformará na coruja da fábula. Seus filhotes não são feios, eles têm história, sinta essa textura, veja o tipo da letra, o amarelo que prova sua resistência. São seres orgânicos, que respiram e sentem.

Certa ocasião, estava com amigos na Lapa, humanos e um em papel. Era uma obra de Clarice Lispector, “A paixão segundo G.H.” (um bibliófilo raramente esquece um título). Caminhávamos pelas ruas lotadas, quando, num esbarrão, o bebê que carregava cai no rua. Sem pestanejar, empurrei uma amiga e fui ao resgaste antes que mais danos ocorressem. Ao me levantar, ela me olhou num misto de surpresa e indignação. “Você gosta mais de livros que de gente.” Apesar de constrangido, nada comentei. Algumas verdades estão implícitas, mesmo quando a acusação se abre à nossa frente como páginas novas.

Quando perguntado sobre sua apreciação ao odor das massas, o então candidato militar João Figueiredo marcou: “O cheirinho dos cavalos é melhor.” Embora não seja um fã deste personagem, entendo-o em parte. Não escolhemos nossos amores, somos escolhidos. Alguns livros são mais ricos e em melhores condições que muita gente na rua. E quem resiste ao cheirinho de livro novo?…
Daniel Russell Ribas

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