segunda-feira, novembro 18

Celso, eu e nossos livros

Há dias uma certa tensão me ronda, dessas que não inoculam qualquer um, suponho: estou falando da síndrome da separação dos livros. De milhares de livros, que pesam 6 toneladas e medem, nas estantes, quase 1 quilômetro de lombadas. Explico-me: vou doar a Biblioteca Celso Furtado para o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo. Para lá também irão os arquivos pessoais de Celso.

Faz dez anos que a Biblioteca Celso Furtado está organizadíssima, com catálogo on-line, acesso ao público e sendo cuidada pela maravilhosa Aline Balue. Mas chegou a hora de virar a página. Livros e arquivos pessoais — a “papelada” — estarão lado a lado, formando um conjunto do que Celso deixou de sua vida como intelectual e homem público.


Enquanto correram os trâmites da doação, tudo pareceu profissional, asséptico, distante. Mas agora trata-se da separação física, o que é bem diferente. Para efeitos informáticos, já estão separadas a Biblioteca Celso Furtado e a minha. Justamente: esse “minha” agrava a síndrome. Pois, se por anos a fio percorremos tantas livrarias, tantos sebos em becos mais ou menos sinistros da Ásia, da América Latina, do Leste Europeu, se o excesso de bagagem era sempre por acúmulo de livros, sinto que esses livros eram “nossos”.

Um dia, Celso e eu estávamos em Paris, na casa pequena e cheia de livros por todas as paredes, e ele me perguntou: “O que nós vamos fazer com esses livros?”. Logo depois, sabedor dos 28 anos de diferença entre nós, emendou: “O que você vai fazer com todos esses livros?”. “Vou fazer o que você quiser”, respondi. Começou ali o sentido de responsabilidade que eu tinha em relação à herança intelectual do Celso. Afinal, havíamos nos conhecido em 1979, quando nos vimos numa feijoada na casa de exilados brasileiros, e só fazíamos acumular livros.

São três vertentes: a biblioteca, a papelada e o trabalho editorial que fiz com a obra e vida dele. Eram três bibliotecas. A primeira era formada por todos os livros que ele tinha desde garoto até 1964 e foi deixada no Rio de Janeiro, quando saiu para o exílio com 43 anos e uma mala de 25 quilos na mão. A partir daí começa a segunda e maior biblioteca, a de Paris, montada entre 1965 e 1985, até ele retornar ao Brasil. A terceira biblioteca começa no fim do exílio. Ele não traz nada de Paris, e monta essa última até sua morte, em 2004.

Quando ele morreu, comecei a fazer o inventário e logo tive a consciência de que os livros não tinham grande valor. Celso não era um bibliófilo, de comprar livros de primeira edição, raros. Mas, necessariamente, há raridades na biblioteca. Ele não foi atrás de edições específicas, comprava para ler, mas, com o passar dos anos, esses livros se tornaram raridades, como acontece com qualquer um que os conserva.

Para minha sorte, quando foi criado o Centro Celso Furtado — um centro idealizado pelo (ex-presidente) Lula para pensar o desenvolvimento do Brasil e que levou o nome do Celso —, as bibliotecas se tornaram uma única. Com o anúncio da criação do centro, comecei a mudança dos livros. Só em Paris havia 6 mil, majoritariamente acadêmicos. Foi um sufoco, porque não havia mais transportadora que mandasse unicamente livros para o Brasil. As transportadoras ganham por metro cúbico e só queriam as mudanças de diplomata, que tem sofá, um monte de poltronas, mesa etc. Eu só tinha livro. Consegui uma que topou, desde que eu embalasse. Virei empacotadora de livro. Foi um tal de comprar caixa de papelão em Paris... Nossa casa, perto da Sorbonne, numa região que os brasileiros chamam de Baixo Quartier Latin, virou uma pirâmide de caixas.

“Tomei coragem: estou bravamente arrumando a pilha ‘VAI’ e a ‘FICA’. E lembrando de uma velhinha, minha vizinha em Paris, que botou para correr a assistente social que queria arrumar sua casa: ‘Pode jogar fora tudo que quiser, mas não pode tocar em meus livros”

A primeira parte da biblioteca estava num apartamento que Celso tinha no Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro, e a terceira estava em nossa casa também no Rio, em Copacabana. Essa terceira tem uma parte minha, com meus romances, e muitos livros de arte dele. No total, somadas as três, são 14 mil livros. Celso nunca viu, obviamente, essa biblioteca reunida. E lá tem de tudo. Ele tinha uma cabeça interdisciplinar. Era um dos economistas mais abertos a outras ciências sociais da geração dele. Era focado em economia, mas a quantidade de livros sobre história, psicanálise, literatura e filosofia é inacreditável.

Além dos livros, percebi que, quando o Celso morreu, eu tinha mais um dever. Não faço questão de ganhar dinheiro com a obra do Celso. Ele me fez herdeira por testamento de todos os livros e de todo o acervo pessoal e documental. Herdei um patrimônio grande, em peso, mas também em importância histórica. Comecei primeiro pelo trabalho editorial, de maneira que os livros clássicos dele sejam reeditados periodicamente. Fiz a edição definitiva — que é quando o próprio autor ou alguém com a capacidade para tanto consegue cotejar os originais — de "Formação econômica do Brasil" na Companhia das Letras. Pegamos os manuscritos e fomos cotejando. Dos 30 livros do Celso, fizemos quatro edições definitivas. Também organizamos os artigos, os ensaios, entre outros projetos. Eu francamente acho que é um dever, mas tenho prazer em fazer livro. Existe o lado efetivo, claro, mas são os arquivos de uma pessoa que foi muito importante para o Brasil.

Fora os livros e o trabalho editorial, comecei a pensar num dado momento no que fazer com a papelada. Justamente por Celso ter morado fora durante muito tempo, os pais dele guardaram seus papéis por anos. “Não mexe nessas coisas aí porque são as coisas do Celso.” Até um capacete americano da Segunda Guerra Mundial, de quando ele serviu na Força Expedicionária Brasileira (FEB), tenho em casa. Há ainda os documentos da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal). Há um acervo em especial que é uma matéria-prima riquíssima para pesquisadores, que são os papéis dele da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene, criada por Furtado no governo JK). Quando houve o golpe de 1964, Celso presidia a Sudene desde 1959. Ao chegar a notícia de que o general Olímpio Mourão Filho estava se rebelando no Sul, ele tentou entrar na Sudene, mas a superintendência já estava sob intervenção. O militar o deixou entrar, e Celso pegou seus documentos pessoais. Tudo isso está lá em casa, os documentos dos governos Juscelino, Jânio e Jango.

Agora, editei os diários do Celso, que chamei de "Diários intermitentes". O nome é apropriado porque ele não era um “diarista”, não escrevia todo dia, mas os diários foram muito importantes para ele em alguns momentos. Ali escreveu sobre as primeiras vezes em que ia a um país, encontros com personalidades, horas de tensão... Por exemplo, escreveu depois de ter participado de uma batalha política violenta. E ainda há os balanços de vida. O primeiro foi quando voltou da guerra, aos 25 anos, e escreve mostrando que não seguiria o Direito, decidindo ir para a Europa. Depois, faz o mais profundo dos balanços, quando chega a (Universidade) Yale, em setembro de 1964, meses depois do golpe. É o começo do longo exílio. Celso diz pertencer a uma geração derrotada, que não soube lutar contra o subdesenvolvimento. Depois, a última reflexão foi escrita em 1975, dez anos depois de ele partir para o exílio. Celso relata que o Brasil que ele descobre é um país de muita concentração de renda, dos ricos cada vez mais ricos, distante do país com o qual ele sonhara. É um relato triste.

Mas, agora, o que mais sinto é a separação dos livros. Como se separar dos que vêm da adolescência; da coleção herdada dos pais, encadernada com iniciais em dourado; dos livros de arte folheados com cuidado para não estragá-los; dos que, ao contrário, estão cheios de rabiscos porque serviram para o trabalho; dos romances lidos e que não tem mais sentido guardar; inversamente, dos não lidos, que a gente comprou achando que ia ler logo, logo, e que esperam há anos? E os livros dos amigos, com dedicatórias, os de gente que mal se conhece, os de antigos namorados? E os livros que a gente fez, seja porque os escreveu, os traduziu? Tomei coragem: estou bravamente arrumando a pilha “VAI” e a pilha “FICA”. E lembrando de uma velhinha, minha vizinha em Paris, “alzheimada’’ em último grau, que botou para correr a assistente social que queria arrumar sua casa: “Pode jogar fora tudo que quiser, mas não pode tocar em meus livros”.
Rosa Freire D’Aguiar, viúva do economista Celso Furtado, decidiu doar os 14 mil livros que os dois compraram juntos pelo mundo

Nenhum comentário:

Postar um comentário