quinta-feira, novembro 21

O porteiro cego

À entrada do edifício, atrás de uma escrivaninha, sentava-se o velho porteiro cego. Reconhecia-me, acreditava eu, pelo sotaque dos meus passos. Sempre se adiantava ao meu cumprimento: “Bom dia, senhor Vasconcelos! Como vai o senhor?”

O velho troçava da própria condição:

“Já vi dias melhores.”

Depois perguntava pelos meus filhos. Comentava algum artigo meu. Por vezes, encontrava a mulher dele, uma senhora ainda jovem, sentada, a ler os jornais em voz alta, enquanto o porteiro escutava, num silêncio atento. Era um homem magro, com um rosto comprido e seco, riscado de cicatrizes. A mulher, Dona Esmeralda, redonda e lisa como uma uva, gostava de rir. Ria muito, por tudo e por nada. Costumava ouvi-la cantar enquanto varria o pátio. Foi Dona Esmeralda quem me contou como o marido perdeu os olhos:

“Esteve na guerra, como sapador. Um dia se distraiu, enquanto desarmava uma mina… Pum!” — E riu-se.

De volta a Luanda, passei diante do edifício. Decidi entrar para rever o velho Vasconcelos. Continuava lá, no seu posto:

“Senhor Zé?! Há quantos anos!”

Abracei-o. Perguntei pela esposa. Disse-me que Dona Esmeralda morrera de malária, dois anos antes. Não tendo ninguém para lhe ler os jornais, Vasconcelos ouve rádio. Continua a par de tudo quanto acontece no país e no mundo. Sentei-me a conversar com ele. Pela primeira vez, fiz-lhe a pergunta que trazia presa há tantos anos:

“Como você consegue reconhecer as pessoas, antes mesmo que elas digam alguma coisa?”

O velho hesitou um instante:

“Não sei bem.”

“Não é pelo som, pela maneira como caminham?” — insisti.

“No início, sim, eu prestava muita atenção aos sons. Prestava atenção aos cheiros. Depois, me habituei. Agora reconheço as pessoas, mesmo ao longe, antes que elas digam alguma coisa, mas não sei como faço isso. Apenas olho para elas e sei quem são.”

Conheci um caso ainda mais assombroso. Em 2006, entrevistei uma antiga lenda da música popular urbana de Moçambique, João Domingos, um senhor de muita idade, que mantinha intacto o aprumo e a elegância com que se havia celebrizado, nos anos 1950. Elogiei-lhe a boa forma física. Disse-me que se sentia muito bem. Só não estava conseguindo ler as letras pequenas dos jornais, de forma que decidira consultar um oftalmologista. Depois de o observar atentamente, o médico sentara-se, atônito, diante dele: “Não sei como lhe dizer isto, mas o senhor não deveria ver nada. O senhor é cego”. Um outro especialista confirmou o veredicto do primeiro. Anos mais tarde, conheci uma filha de João Domingos. Disse-lhe que entrevistara o pai. “Deve ter-lhe contado muitas mentiras”, disse-me, abrindo um enorme sorriso: “Ele é um grande mentiroso”. Lembrei-me da estranha história que o velho me contara. Ela ficou séria: “Não! Não! Isso é verdade!”

Talvez sejamos quase todos cegos — de sentidos que ainda nem sequer sabemos nomear —, apenas porque não queremos ou não sabemos ver. Então, de repente, perdemos um sentido, e, sem nos darmos conta, ganhamos acesso a outros. Vê quem quer ver, tendo olhos ou não.

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