domingo, janeiro 7

Os exércitos bem ordenados

 

Nada era tão belo, tão lesto, tão brilhante, tão bem-ordenado quanto os dois exércitos. Os clarins, os pífaros, os oboés, os tambores, os canhões, formavam uma harmonia tal como nunca houve no inferno. Os canhões derrubaram de início cerca de seis mil homens de cada lado; em seguida a rajada de mosquetes tirou do melhor dos mundos por volta de dez mil malandros que lhe infectavam a superfície. A baioneta também foi a razão suficiente da morte de alguns milhares de homens. O total bem podia chegar a umas trinta mil almas. Cândido, que tremia como um filósofo, escondeu-se o melhor que pôde durante aquela carnificina heroica.

Finalmente, enquanto ambos os reis faziam cantar o Te Deum cada um em seu campo, ele tomou o partido de ir arrazoar em outro lugar sobre efeitos e causas. Passou por cima de montes de mortos e de moribundos e chegou primeiro a uma aldeia vizinha; ela estava em cinzas: era uma aldeia abar que os búlgaros haviam queimado, segundo as leis do direito público. Aqui, anciãos crivados de tiros olhavam morrer as suas mulheres degoladas, que mantinham os filhos nas mamas ensanguentadas; ali, moças estripadas depois de terem saciado as necessidades naturais de alguns heróis exalavam o último suspiro; outras, meio queimadas, gritavam que terminassem de matá-las. Cérebros estavam espalhados pela terra, ao lado de braços e pernas amputados.

Cândido fugiu o mais depressa que pôde para outra aldeia; ela pertencia aos búlgaros, e heróis abares haviam-na tratado da mesma forma. Cândido, sempre caminhando sobre membros palpitantes ou através de ruínas, deixou enfim o teatro da guerra, carregando umas provisõezinhas em seu embornal e não esquecendo nunca a srta. Cunegunda. Faltaram-lhe provisões quando chegou à Holanda; mas tendo ouvido dizer que todo mundo era rico nesse país, e que o povo dali era cristão, não teve dúvidas de que o tratariam tão bem quanto o fora no castelo do senhor barão antes que de lá fosse expulso pelos belos olhos da srta. Cunegunda.

Pediu esmola a várias personagens sisudas, que lhe responderam todas que, se ele continuasse a exercer esse ofício, iriam trancafiá-lo numa casa de correção para que aprendesse a viver.

Dirigiu-se depois a um homem que acabara de falar uma hora seguida sobre a caridade numa grande assembleia. Esse orador, olhando-o de atravessado, disse-lhe: “O que é que o senhor veio fazer aqui? Está aqui pela boa causa?”. “Não existe efeito sem causa”, respondeu modestamente Cândido, “tudo está encadeado necessariamente e arranjado em função do melhor. Foi preciso que eu fosse expulso de junto da senhorita Cunegunda, que tivesse passado pelo açoite, e é preciso que eu peça o meu pão até que possa ganhá-lo; tudo isso não podia ser de outra maneira.” “Meu amigo”, disse o orador, “o senhor acredita que o papa seja o Anticristo?” “Eu ainda não tinha ouvido dizer isso”, respondeu Cândido; “mas quer ele o seja, quer não, está me faltando pão.” “Não mereces comê-lo”, disse o outro; “vá, malandrinho, vá, miserável, não chegues perto de mim pelo resto de tua vida.” A mulher do orador, tendo posto a cabeça na janela e avistando um homem que duvidava que o papa fosse o Anticristo, derramou-lhe na cabeça um… cheio. Ó céu! A que excesso chega o zelo da religião nas mulheres!

Um homem que não tinha sido batizado, um bom anabatista chamado Tiago, viu a maneira cruel e ignominiosa com que assim se tratava um de seus irmãos, um ser de dois pés sem penas, que tinha uma alma; ele o levou à sua casa, limpou-o, deu-lhe pão e cerveja, presenteou-o com dois florins, e até quis ensinar-lhe a trabalhar nas suas manufaturas de tecidos da Pérsia que se fabricam na Holanda. Cândido, quase se prosternando diante dele, exclamou: “Mestre Pangloss bem que me dissera que tudo está pelo melhor no mundo, pois estou infinitamente mais comovido com a vossa extrema generosidade do que com a severidade daquele senhor de sobretudo preto e da senhora sua esposa”.

No dia seguinte, enquanto passeava, encontrou um mendigo coberto de pústulas, de olhos mortiços, com a ponta do nariz roída, a boca torta, dentes pretos e falando com uma voz estrangulada, atormentado por uma tosse violenta e cuspindo um dente a cada esforço.
Voltaire, "Cândido ou o Otimismo"

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