sábado, novembro 30
A floresta adormecida
As Flores e o Corvo erguem-se uma defronte da outra, separadas por um canal de quinze milhas, o Corvo espesso e nu, as Flores violeta e verde com rochas violetas e os cimos dum pasto delicado. Pelos altos das falésias povoações esparsas, o Monte, a Fazenda, Cedros, Ponta Ruiva, entre colinas arredondadas e renques de hortenses que dividem os campos. Lá para o fundo três pináculos escuros e mais longe alguns cerros de um azul quase negro. A costa vai-se aproximando com saliências e negrumes, e o verde tenro das ervas cada vez mais tenro, destacando-se da massa espessa, onde emergem os píncaros cada vez mais escuros. Um esguicho de sol cai de entre nuvens pesadas, ilumina e doira, desfaz-se em poeira sobre o primeiro piano, enquanto o outro se conserva esfumado. Mais pesada é a massa dos montes, o recorte dos penedos; só a água dum verde-claro estremece a meus pés. Entramos pelas rochas afiadas do porto de Santa Cruz. Duas outras ruas muito limpas, a igreja, a praça, o convento, e logo por trás uma colina esmeralda de formas regulares e perfeitas como um seio túmido apontando o bico para o céu.
1 de Julho
Hoje, outro dia enevoado. Com este tempo turvo, amanhece tudo cheio de orvalho, as árvores, os milhos, o trevo em flor, as fitas prateadas da erva, cujas hastes estremecem e não podem com o peso. Olho num espanto a volúpia do monte verde cortado por sebes azuis de hortenses, com uma grande nuvem cor de chumbo em cima; a falésia monstruosa em roxo e verde, a luz carregada de humidade com clarões esbranquiçados de nevoeiro, que alastram e se desfazem em névoa peneirada e fina; o Corvo ao longe, desaparecendo na humidade e reaparecendo, quando a cortina se descerra – a fisionomia estranha da terra, a vida efémera da água, da chuva e do tempo fantasmagórico. O carácter desta paisagem é a serenidade com uma pontinha de tristeza...Sempre. enevoada e fresca, húmida, como aquele monte voluptuoso ao fundo, é uma paisagem casta, que se oculta e revela, uma paisagem feminina no momento único em que se desnuda com pudor. A chuva é leve, as névoas molhadas não passam de orvalho doirado que o sol ilumina e atravessa. E quando cai (cai muitas vezes), é em borrifos que vêm lá de cima de uma brancura, sobre o calor abafado. De repente aparece o Sol – de repente tudo muda à vista, como um cenário, tornando-se difuso e turvo.
As nuvens nos Açores têm uma vida extraordinária, uma vida que não percebo bem! Hoje uma sobre o Corvo lembra uma auréola magnética. Amontoam-se no horizonte, surgem outras em bando, esguias nas extremidades, a que chamam baleotes e que indicam mudança de tempo. Há-as escuras com claridades extraordinárias pelo lado de trás; há-as que viajam no céu com importância de deuses... Tenho a impressão de que há nas Flores a luz mais delicada dos Açores, a luz vaporizada que se sensibiliza a todos os momentos. É talvez da cor, que é única, do pó roxo, do verde dos pastos sempre tenro e uniforme – é talvez da mistura dos nervos do mar, da chuva de Verão, do sol que se desfaz em oiro sobre tudo isto, e destas nuvens mágicas que interceptam a luz ruborizando-se como grandes velários de cor – para logo se desfazerem diante de meus olhos em arabescos, em fios ténues, em farrapos... Todas as cores se fundem e acabam por se apagar em cinzento, deixando só resquícios na atmosfera húmida. Nunca assim vi ambiente tão rico em prestigio, sempre diverso e sempre em movimento. É o cinzento que predomina – mas um cinzento colorido onde bóiam cores húmidas, principalmente o verde e o violeta –jorrando, atabafando em pardo e violeta montes verdes a escorrer. Éo que dá prestigio a esta terra molhada, onde o próprio sol parece molhado molhado e doirado, tão leve que mal trespassa o cinzento... Então, um momento iluminado, o panorama respira, arfa devagarinho como um seio, ainda orvalhado do banho e aquecido pelo Verão, ruborizado e sorrindo por ter de despir a camisa diante da gente. Outras vezes tudo desaparece ou toma proporções fantasmagóricas e a água goteja doirada. Água, ar e bruma intimamente se casam para produzirem esta impressão casta e cinzenta ou toda violeta como a obra de arte de uma individualidade estranha.
Esta atmosfera explica que a ilha esteja quase toda a regime pastoril. Deixam de cultivar os campos para obter mais erva: é o menor esforço. O gado que não dá leite, farta-se e engorda para o mercado. Anda durante o Verão, dia e noite, nas relvas; só de Inverno o trazem para a porta e o metem nos palheiros. Quase não há lavrador, mesmo pobre, que não tenha três vacas leiteiras. Erva – erva – erva fofa que cresce, é logo devorada e sai pelas tetas dos bichos. De todo este verde casto brota, incha, corre um jorro constante de leite que todos os dias se transforma em manteiga. Não se vê correr como as águas da Fazenda ou da Ribeira, mas o seu volume é muito maior. Carne e leite, eis o resultado do calor abafadiço e da nuvem persistente que cobre a ilha e não a larga, amornando-a e humedecendo-a. Todas as aldeias do litoral, viradas para o mar, têm uma dúzia de campos de milho e de batata-doce e cultivam alguns olheiros de inhames necessários para a sua alimentação. O resto é pasto. À volta e sempre, relvas, ondulações verdes de colinas. Dão leite os montes e vales, e até dão leite as crateras dos pacíficos vulcões, que às vezes abrigam uma aldeia no seio. Um grande jorro branco corre de toda a parte para as fábricas, se transforma em manteiga e é embarcado para esse mundo. A grande canseira da lavoura florentina é ordenhar duas vezes por dia as vacas enormes que trazem a rasto um úbere monstruoso como uma doença. Da transparência verde e oiro, mágica e aérea, toda molhada e calma, com grandes píncaros aparecendo e desaparecendo nas nuvens desgrenhadas – quase imaterial – sai leite branco e tépido, como se o ar, o verde, a chuva, os clarões esbranquiçados, a atmosfera móvel, se convertessem em leite, e esta fantasmagoria cinzenta e roxa que a gente só vê nas nuvens fugidias, doiradas pelo sol e que arremedam todas as imagens, fosse gerada de propósito para ama de criação. Tudo tende para o mesmo fim. A erva vê-se crescer dum dia para o outro, regada pelo céu e sob uma luz velada de estufa. Por isso aquele grande monte voluptuoso se me afigura simbólico. É um seio que se tumifica: do bico apontado para o céu escorre um jorro perene de leite.
Subo lá acima àquele seio túmido e doirado, cuja pele atinge a magnificência dos veludos. Lá do alto abrange-se parte da ilha, os vales cheios de árvores, a costa recortada, os grandes plainos do fundo retalhados como uma manta pobre, farrapo mais claro de trigo, farrapo amarelo de centeio já maduro. Às vezes vem do mar um chuveiro e toda a amplidão desmaia ou se turva e afasta. Entre a cortina vaporosa distingo o dorso arredondado das relvas, uma casota branca donde irrompe um cedro dum verde de sepulcro, riscos escuros de pinheirais, e pouco a pouco desvendando-se, toda a amplidão sossegada, o anfiteatro da Ribeira de Barqueiros, a chapada quase negra da falésia, o Corvo violeta, e a meus pés a vila em relevo. A impressão é de frescura e calma, de névoas misturadas de oiro. Esta paisagem molhada e verde é vaga como um sonho: entreabre-se, fecha-se, sorri e adormece... Um silêncio enorme (todos os ruídos são abafados pela névoa), uma amplidão de ervas gotejando, uma luz serena e toldada.
Duas estradinhas de alguns quilómetros acabam logo ali, uma no Boqueirão, outra na Ribeira da Cruz, seguindo por entre casinhas brancas, quintalejos, hortas, milhos envernizados de novo, renques de faias formando abrigo para o vento. Pastos e mais pastos, e os tourinhos deitados na erva com a barriga cheia e que já não podem comer mais. Todos os bichos estão fartos. Dos taludes rebentam moutas de sardinheiras, pés de malvões ou de hortenses viçosas. Mais postos sempre... É o paraíso das vacas: negras, amarelas, malhadas, com uma grande dignidade e o sentimento da sua importância, tomam o caminho, com o extremo das pontas doirado e os úberes enormes a rasto pelo chão. Outras afogam-se na erva tenra e comem e digerem, dormem e comem de dia e de noite, olhando quem passa com desprezo. Por um rasgão vê-se o mar espelhado onde a luz esbranquiçada das nuvens se reflecte, e lá no fundo a Ribeira de Barqueiros com um biombo de montes muito verdes. Todos os tons do verde estão aqui representados, cheios de viço e frescura − o verde-azul e derretido nos fundos, o verde-escuro dos lagos de inhames, o verde macio das relvas, o verde-negro das faias, apagados e fundidos no orvalho. Em direcção oposta segue outra estrada pelas Alfavacas, cultivadas a milho, a batata-doce e a tabaco, disposto em linhas regulares e com as folhas pontiagudas entreabertas. Sempre a mesma humidade e a mesma cor... E este verde sossegado insinua-se pouco e pouco e pacifica.
1 de Julho
Hoje, outro dia enevoado. Com este tempo turvo, amanhece tudo cheio de orvalho, as árvores, os milhos, o trevo em flor, as fitas prateadas da erva, cujas hastes estremecem e não podem com o peso. Olho num espanto a volúpia do monte verde cortado por sebes azuis de hortenses, com uma grande nuvem cor de chumbo em cima; a falésia monstruosa em roxo e verde, a luz carregada de humidade com clarões esbranquiçados de nevoeiro, que alastram e se desfazem em névoa peneirada e fina; o Corvo ao longe, desaparecendo na humidade e reaparecendo, quando a cortina se descerra – a fisionomia estranha da terra, a vida efémera da água, da chuva e do tempo fantasmagórico. O carácter desta paisagem é a serenidade com uma pontinha de tristeza...Sempre. enevoada e fresca, húmida, como aquele monte voluptuoso ao fundo, é uma paisagem casta, que se oculta e revela, uma paisagem feminina no momento único em que se desnuda com pudor. A chuva é leve, as névoas molhadas não passam de orvalho doirado que o sol ilumina e atravessa. E quando cai (cai muitas vezes), é em borrifos que vêm lá de cima de uma brancura, sobre o calor abafado. De repente aparece o Sol – de repente tudo muda à vista, como um cenário, tornando-se difuso e turvo.
As nuvens nos Açores têm uma vida extraordinária, uma vida que não percebo bem! Hoje uma sobre o Corvo lembra uma auréola magnética. Amontoam-se no horizonte, surgem outras em bando, esguias nas extremidades, a que chamam baleotes e que indicam mudança de tempo. Há-as escuras com claridades extraordinárias pelo lado de trás; há-as que viajam no céu com importância de deuses... Tenho a impressão de que há nas Flores a luz mais delicada dos Açores, a luz vaporizada que se sensibiliza a todos os momentos. É talvez da cor, que é única, do pó roxo, do verde dos pastos sempre tenro e uniforme – é talvez da mistura dos nervos do mar, da chuva de Verão, do sol que se desfaz em oiro sobre tudo isto, e destas nuvens mágicas que interceptam a luz ruborizando-se como grandes velários de cor – para logo se desfazerem diante de meus olhos em arabescos, em fios ténues, em farrapos... Todas as cores se fundem e acabam por se apagar em cinzento, deixando só resquícios na atmosfera húmida. Nunca assim vi ambiente tão rico em prestigio, sempre diverso e sempre em movimento. É o cinzento que predomina – mas um cinzento colorido onde bóiam cores húmidas, principalmente o verde e o violeta –jorrando, atabafando em pardo e violeta montes verdes a escorrer. Éo que dá prestigio a esta terra molhada, onde o próprio sol parece molhado molhado e doirado, tão leve que mal trespassa o cinzento... Então, um momento iluminado, o panorama respira, arfa devagarinho como um seio, ainda orvalhado do banho e aquecido pelo Verão, ruborizado e sorrindo por ter de despir a camisa diante da gente. Outras vezes tudo desaparece ou toma proporções fantasmagóricas e a água goteja doirada. Água, ar e bruma intimamente se casam para produzirem esta impressão casta e cinzenta ou toda violeta como a obra de arte de uma individualidade estranha.
Esta atmosfera explica que a ilha esteja quase toda a regime pastoril. Deixam de cultivar os campos para obter mais erva: é o menor esforço. O gado que não dá leite, farta-se e engorda para o mercado. Anda durante o Verão, dia e noite, nas relvas; só de Inverno o trazem para a porta e o metem nos palheiros. Quase não há lavrador, mesmo pobre, que não tenha três vacas leiteiras. Erva – erva – erva fofa que cresce, é logo devorada e sai pelas tetas dos bichos. De todo este verde casto brota, incha, corre um jorro constante de leite que todos os dias se transforma em manteiga. Não se vê correr como as águas da Fazenda ou da Ribeira, mas o seu volume é muito maior. Carne e leite, eis o resultado do calor abafadiço e da nuvem persistente que cobre a ilha e não a larga, amornando-a e humedecendo-a. Todas as aldeias do litoral, viradas para o mar, têm uma dúzia de campos de milho e de batata-doce e cultivam alguns olheiros de inhames necessários para a sua alimentação. O resto é pasto. À volta e sempre, relvas, ondulações verdes de colinas. Dão leite os montes e vales, e até dão leite as crateras dos pacíficos vulcões, que às vezes abrigam uma aldeia no seio. Um grande jorro branco corre de toda a parte para as fábricas, se transforma em manteiga e é embarcado para esse mundo. A grande canseira da lavoura florentina é ordenhar duas vezes por dia as vacas enormes que trazem a rasto um úbere monstruoso como uma doença. Da transparência verde e oiro, mágica e aérea, toda molhada e calma, com grandes píncaros aparecendo e desaparecendo nas nuvens desgrenhadas – quase imaterial – sai leite branco e tépido, como se o ar, o verde, a chuva, os clarões esbranquiçados, a atmosfera móvel, se convertessem em leite, e esta fantasmagoria cinzenta e roxa que a gente só vê nas nuvens fugidias, doiradas pelo sol e que arremedam todas as imagens, fosse gerada de propósito para ama de criação. Tudo tende para o mesmo fim. A erva vê-se crescer dum dia para o outro, regada pelo céu e sob uma luz velada de estufa. Por isso aquele grande monte voluptuoso se me afigura simbólico. É um seio que se tumifica: do bico apontado para o céu escorre um jorro perene de leite.
Subo lá acima àquele seio túmido e doirado, cuja pele atinge a magnificência dos veludos. Lá do alto abrange-se parte da ilha, os vales cheios de árvores, a costa recortada, os grandes plainos do fundo retalhados como uma manta pobre, farrapo mais claro de trigo, farrapo amarelo de centeio já maduro. Às vezes vem do mar um chuveiro e toda a amplidão desmaia ou se turva e afasta. Entre a cortina vaporosa distingo o dorso arredondado das relvas, uma casota branca donde irrompe um cedro dum verde de sepulcro, riscos escuros de pinheirais, e pouco a pouco desvendando-se, toda a amplidão sossegada, o anfiteatro da Ribeira de Barqueiros, a chapada quase negra da falésia, o Corvo violeta, e a meus pés a vila em relevo. A impressão é de frescura e calma, de névoas misturadas de oiro. Esta paisagem molhada e verde é vaga como um sonho: entreabre-se, fecha-se, sorri e adormece... Um silêncio enorme (todos os ruídos são abafados pela névoa), uma amplidão de ervas gotejando, uma luz serena e toldada.
Duas estradinhas de alguns quilómetros acabam logo ali, uma no Boqueirão, outra na Ribeira da Cruz, seguindo por entre casinhas brancas, quintalejos, hortas, milhos envernizados de novo, renques de faias formando abrigo para o vento. Pastos e mais pastos, e os tourinhos deitados na erva com a barriga cheia e que já não podem comer mais. Todos os bichos estão fartos. Dos taludes rebentam moutas de sardinheiras, pés de malvões ou de hortenses viçosas. Mais postos sempre... É o paraíso das vacas: negras, amarelas, malhadas, com uma grande dignidade e o sentimento da sua importância, tomam o caminho, com o extremo das pontas doirado e os úberes enormes a rasto pelo chão. Outras afogam-se na erva tenra e comem e digerem, dormem e comem de dia e de noite, olhando quem passa com desprezo. Por um rasgão vê-se o mar espelhado onde a luz esbranquiçada das nuvens se reflecte, e lá no fundo a Ribeira de Barqueiros com um biombo de montes muito verdes. Todos os tons do verde estão aqui representados, cheios de viço e frescura − o verde-azul e derretido nos fundos, o verde-escuro dos lagos de inhames, o verde macio das relvas, o verde-negro das faias, apagados e fundidos no orvalho. Em direcção oposta segue outra estrada pelas Alfavacas, cultivadas a milho, a batata-doce e a tabaco, disposto em linhas regulares e com as folhas pontiagudas entreabertas. Sempre a mesma humidade e a mesma cor... E este verde sossegado insinua-se pouco e pouco e pacifica.
Fica-nos na retina a cor verde e nos ouvidos a flauta afastada dos melros que assobiam sem interrupção no arvoredo formando biombo aos campos de milho. Esta linda estrada estaca de repente diante da falésia e em frente da baiazinha de S. Pedro. Espero o pôr do Sol doirado por trás das nuvens cinzentas, espero a irrealidade do crepúsculo nesta luz sempre cheia de surpresas. A costa para o nascente desdobra-se em cinzento, em roxo e negro no primeiro plano, com uma grande nuvem cor de chumbo a desfazer-se-lhe em cima e um rasgão de céu mais alto e claro, de planície etérea cor-de-rosa. Da névoa esfarrapada sai um clarão de fogo – riscos de oiro atravessam a poeira incendiando tudo em explosão. Por baixo a falésia alta derruba-se sobre o mar, com filamentos verdes derretidos nas águas. No segundo plano o azul mistura-se ao roxo e ao negro requeimado de grandes penedos. E no fundo anda pó verde do mar entranhado no pó roxo que dilui tudo na mesma tonalidade – as águas, o céu, as rochas aguçadas e dramáticas. Mais um momento e o drama chega ao auge: um crepúsculo em que a gente vê as cores despenharem-se num abismo uma atrás da outra – o azul, o roxo, o lilás, enquanto o horizonte se incendeia. Tudo isto, diante dos meus olhos deslumbrados, escurece, torna-se violeta, afoga-se em névoa, morre num estertor violeta e cinzento. E, por trás dos montes já negros, levanta-se, aumenta e nunca mais cessa a fumarada prodigiosa das nuvens...”
Raul Brandão, "As Ilhas Desconhecidas"
Raul Brandão, "As Ilhas Desconhecidas"
Leitura entre o caos
Tempos...
Tempos difíceis favorecem a boa literatura, mas tempos difíceis também dificultam a leitura
Michel Butor
Aflições dos escritores
LIÇÃO Nº 1: OS LIVROS COMO PERSEGUIDORES IMPLACÁVEIS
Como muitos escritores, passei boa parte de minha vida correndo atrás de livros – obras que me servissem de modelo, de inspiração. Fui a livrarias, a sebos, revirei as famosas caixas da Feira do Livro. E isso, acho, acontece com todos.
Mas há um momento na vida dos escritores em que os livros começam a correr atrás dos autores. Isso acontece, sobretudo, em encontros de literatura. Nessas ocasiões, numerosas pessoas distribuem exemplares de suas obras, o que é sempre uma coisa amável e uma fonte freqüente de surpresas agradáveis. Mas quando o evento ocorre numa cidade distante surge um problema: como transportar tantos livros? A esses objetos jamais se aplica a frase que a mão divina inscreveu na parede do palácio de Nabucodonosor, a sentença interpretada por Daniel: “Foste pesado na balança e encontrado muito leve”. Livros raramente são leves. De outra parte, não são raros os escritores que sofrem de problemas na coluna: muitas horas sentados ao computador, o peso da vida… E aí está criado o dilema: os escritores querem levar os livros que recebem, mas não têm forças para tanto.
Um jeito é “esquecer” os livros no hotel. Mas aí, inevitavelmente, surge uma fantasia paranóica: e se, por acaso, a camareira for amiga de um dos autores e contar sobre esse inesperado achado? Pode-se, claro, remover os indícios do crime, isto é, a folha com a dedicatória. Mas não é impossível que a camareira, movida por ânimo vingador, investigue e descubra quem foi o ocupante do aposento. A folha com dedicatória tem esse risco. O escritor pernambucano Raymundo Carrero contou-me que deu um livro, autografado, a um crítico – para, já no dia seguinte, encontrá-lo em um sebo de Recife. Telefonou ao ingrato, perguntou o que tinha achado da obra. “Estou lendo com grande prazer”, foi a resposta. “Da outra vez que você mentir”, disse Carrero, “pelo menos arranque a folha com a dedicatória”.
Outro jeito é deixar os livros no avião. Foi o que fez um amigo meu: ele transportou a preciosa carga intelectual até a aeronave, mas na hora de desembarcar deixou-a no compartimento de bagagens. Quando estava saindo do aeroporto, chamaram-no pelo alto-falante ao balcão da Varig. Lá, um radiante funcionário avisou que tinham achado os livros e, graças ao computador, haviam conseguido identificar o único ocupante daquela fila de assentos. O escritor conta que levou os livros para casa e nunca mais tentou livrar-se deles.
AFLIÇÃO Nº 2: A EVANESCENTE MEMÓRIA DOS LITERATOS
Os escritores podem sofrer dois tipos de bloqueio. Um é o bloqueio de criação, a síndrome da página (ou da tela) em branco. Sentado durante horas, dias, anos, o pobre ficcionista espera em vão por uma idéia – que não vem. Pessoas que passaram por isso dizem que se trata de uma experiência muito angustiante.
O outro bloqueio surge depois que o livro foi escrito. É um bloqueio de memória, não de inspiração. E é um bloqueio seletivo: refere-se aos nomes dos autografandos. A pessoa está na frente do escritor, sorridente, esperando por uma dedicatória. Que não vem – por causa do esquecimento.
Passei por numerosas situações desse tipo, mas há uma que não esqueço. Um dia entrei na Livraria do Globo (sobre escritores perseguindo livros, ver aflição nº 1) e lá encontrei o professor Ernildo Stein. Que, por coincidência, tinha comprado dois exemplares de um livro meu. De imediato pediume autógrafos, para ele e a irmã. Orgulhoso, saquei a caneta… E pronto, o nome dele sumiu de minha memória. Enfiou-se numa daquelas obscuras cavernas do inconsciente e dali não saía.
Não preciso dizer que entrei em pânico. Mas disfarcei, procurei manter a calma e recorrer a algum truque. Pedi que dissesse o nome da irmã. Ele disse, mas não resolveu nada, não fez cair a famosa ficha (agora substituída pelo cartão telefônico). Em desespero, resolvi puxar conversa. Perguntei se ele por acaso tinha visto o Carlos Appel. Ernildo, um tanto surpreso, disse que não: fazia tempo que não falava com o Appel. Mas então tu tens de ligar para ele, eu disse. Peguei minha caderneta de endereços e comecei, supostamente, a procurar o fone do Appel. Minha esperança era que, de repente, eu encontrasse o nome do Ernildo…
Não encontrei, ele já consultava o relógio, e, arrasado, vi que teria de confessar minha fraqueza: sinto muito, mas não consigo lembrar teu nome. E naquele momento – aleluia! – abriram-se os porões da mente, fez-se a luz. Era o Ernildo! O Ernildo Stein! Grande Ernildo Stein! Eu tinha vontade de entoar o nome dele ao som da Nona Sinfonia de Beethoven!
Falem vocês da glória da literatura. Eu só lembro as aflições.
Como muitos escritores, passei boa parte de minha vida correndo atrás de livros – obras que me servissem de modelo, de inspiração. Fui a livrarias, a sebos, revirei as famosas caixas da Feira do Livro. E isso, acho, acontece com todos.
Mas há um momento na vida dos escritores em que os livros começam a correr atrás dos autores. Isso acontece, sobretudo, em encontros de literatura. Nessas ocasiões, numerosas pessoas distribuem exemplares de suas obras, o que é sempre uma coisa amável e uma fonte freqüente de surpresas agradáveis. Mas quando o evento ocorre numa cidade distante surge um problema: como transportar tantos livros? A esses objetos jamais se aplica a frase que a mão divina inscreveu na parede do palácio de Nabucodonosor, a sentença interpretada por Daniel: “Foste pesado na balança e encontrado muito leve”. Livros raramente são leves. De outra parte, não são raros os escritores que sofrem de problemas na coluna: muitas horas sentados ao computador, o peso da vida… E aí está criado o dilema: os escritores querem levar os livros que recebem, mas não têm forças para tanto.
Um jeito é “esquecer” os livros no hotel. Mas aí, inevitavelmente, surge uma fantasia paranóica: e se, por acaso, a camareira for amiga de um dos autores e contar sobre esse inesperado achado? Pode-se, claro, remover os indícios do crime, isto é, a folha com a dedicatória. Mas não é impossível que a camareira, movida por ânimo vingador, investigue e descubra quem foi o ocupante do aposento. A folha com dedicatória tem esse risco. O escritor pernambucano Raymundo Carrero contou-me que deu um livro, autografado, a um crítico – para, já no dia seguinte, encontrá-lo em um sebo de Recife. Telefonou ao ingrato, perguntou o que tinha achado da obra. “Estou lendo com grande prazer”, foi a resposta. “Da outra vez que você mentir”, disse Carrero, “pelo menos arranque a folha com a dedicatória”.
Outro jeito é deixar os livros no avião. Foi o que fez um amigo meu: ele transportou a preciosa carga intelectual até a aeronave, mas na hora de desembarcar deixou-a no compartimento de bagagens. Quando estava saindo do aeroporto, chamaram-no pelo alto-falante ao balcão da Varig. Lá, um radiante funcionário avisou que tinham achado os livros e, graças ao computador, haviam conseguido identificar o único ocupante daquela fila de assentos. O escritor conta que levou os livros para casa e nunca mais tentou livrar-se deles.
AFLIÇÃO Nº 2: A EVANESCENTE MEMÓRIA DOS LITERATOS
Os escritores podem sofrer dois tipos de bloqueio. Um é o bloqueio de criação, a síndrome da página (ou da tela) em branco. Sentado durante horas, dias, anos, o pobre ficcionista espera em vão por uma idéia – que não vem. Pessoas que passaram por isso dizem que se trata de uma experiência muito angustiante.
O outro bloqueio surge depois que o livro foi escrito. É um bloqueio de memória, não de inspiração. E é um bloqueio seletivo: refere-se aos nomes dos autografandos. A pessoa está na frente do escritor, sorridente, esperando por uma dedicatória. Que não vem – por causa do esquecimento.
Passei por numerosas situações desse tipo, mas há uma que não esqueço. Um dia entrei na Livraria do Globo (sobre escritores perseguindo livros, ver aflição nº 1) e lá encontrei o professor Ernildo Stein. Que, por coincidência, tinha comprado dois exemplares de um livro meu. De imediato pediume autógrafos, para ele e a irmã. Orgulhoso, saquei a caneta… E pronto, o nome dele sumiu de minha memória. Enfiou-se numa daquelas obscuras cavernas do inconsciente e dali não saía.
Não preciso dizer que entrei em pânico. Mas disfarcei, procurei manter a calma e recorrer a algum truque. Pedi que dissesse o nome da irmã. Ele disse, mas não resolveu nada, não fez cair a famosa ficha (agora substituída pelo cartão telefônico). Em desespero, resolvi puxar conversa. Perguntei se ele por acaso tinha visto o Carlos Appel. Ernildo, um tanto surpreso, disse que não: fazia tempo que não falava com o Appel. Mas então tu tens de ligar para ele, eu disse. Peguei minha caderneta de endereços e comecei, supostamente, a procurar o fone do Appel. Minha esperança era que, de repente, eu encontrasse o nome do Ernildo…
Não encontrei, ele já consultava o relógio, e, arrasado, vi que teria de confessar minha fraqueza: sinto muito, mas não consigo lembrar teu nome. E naquele momento – aleluia! – abriram-se os porões da mente, fez-se a luz. Era o Ernildo! O Ernildo Stein! Grande Ernildo Stein! Eu tinha vontade de entoar o nome dele ao som da Nona Sinfonia de Beethoven!
Falem vocês da glória da literatura. Eu só lembro as aflições.
Ser urbanóide
Ser urbanóide é preferir morar perto de um supermercado do que de um pomar de árvores frutíferas.
Ser urbanóide é saber olhar para o trânsito, num viaduto ao longe, como algumas pessoas olham para um regato murmurejante.
Ser urbanóide é ir passando a pé por uma rua bem conhecida e de repente virar a esquina e entrar numa ruazinha transversal, só para ver o que tem ali.
Ser urbanóide é ser capaz de parar na porta de um bar, olhar para dentro, e dois segundos depois pensar: “Aqui não”, e seguir em frente.
Ser urbanóide é ver poesia em nomes de lojas, de salões de manicure, de borracharias, de oficinas, de botequins pé-sujo, de malharias.
Ser urbanóide é atravessar uma rua larga de olho no carro que se aproxima, e à distância negociar direções e velocidades com o motorista.
Ser urbanóide é olhar cada janela de edifício acesa, e mandar uma energia boa para os companheiros de madrugada.
Ser urbanóide é acompanhar todas as crueldades, as explorações e as violências que se praticam na cidade, e não botar na cidade a culpa.
Ser urbanóide é passar uma tarde numa biblioteca só para saber quem foi Fulano de Tal que deu nome à rua em que a gente mora.
Ser urbanóide é ir à feira livre, voltar carregado de sacolas, deixá-las em casa, e depois voltar, só pra curtir a feira.
Ser urbanóide é ter três ou quatro percursos diferentes para ir e para voltar dos lugares habituais – para colorir a rotina.
Ser urbanóide é não se entristecer nem com o outono das demolições nem com a primavera dos projetos imobiliários.
Ser urbanóide é perceber em si mesmo, de repente, uma certa rivalidade com esse pessoal do bairro vizinho, quem pensam eles que são?!
Ser urbanóide é ver numa exposição a foto de uma parede e lembrar onde fica.
Ser urbanóide é chegar numa metrópole desconhecida, deixar as coisas no hotel, e sair andando pelas ruas com olhos de começo de namoro.
Ser urbanóide é cochilar no metrô e acordar pontualmente na estação onde vai descer.
Ser urbanóide é estar numa fila, num vagão de trem, numa sala de espera, olhar todos aqueles rostos e pensar: “Nunca mais estaremos todos juntos novamente”.
Ser urbanóide é ter um sexto sentido sempre ligado para perceber as bicicletas que surgem na contramão ou cruzando a calçada.
Ser urbanóide é ter saudade de uma linha de ônibus que foi desativada.
Ser urbanóide é não ter problema para dormir enquanto trinta pessoas cantam Tim Maia a plenos pulmões no bar da esquina.
Ser urbanóide é pedir ao porteiro que receba a encomenda e mande pelo elevador.
Ser urbanóide é ouvir um tiroteio na madrugada e prestar atenção para ver quantos calibres estão envolvidos.
Ser urbanóide é vir pela calçada e atravessar a rua só pra olhar os livros sobre uma lona na calçada oposta.
Ser urbanóide é voltar a uma certa rua trinta anos depois, ver uma certa porta e ter vontade de tocar de novo a campainha.
Ser urbanóide é ter na memória uma agenda instantânea informando eletricista, pedreiro, loja de conveniência, “vende-se gelo”, mecânico, conserto de malas, quentinha caseira.
Ser urbanóide é chegar à faixa de pedestres com o sinal fechado para os carros, mas esperar primeiro que abra para eles, depois que feche de novo, e só então atravessar com segurança.
Ser urbanóide é saber que cidades e florestas morrem e renascem o tempo todo, de um modo tão parecido e tão diferente.
Ser urbanoide é estar andando numa cidade estrangeira e distante, pensando em mil outras coisas, e ao virar uma esquina se deparar com uma cópia fiel de um recanto de uma cidade querida, um lugar que talvez nem exista mais.
Ser urbanóide é saber olhar para o trânsito, num viaduto ao longe, como algumas pessoas olham para um regato murmurejante.
Ser urbanóide é ir passando a pé por uma rua bem conhecida e de repente virar a esquina e entrar numa ruazinha transversal, só para ver o que tem ali.
Ser urbanóide é ser capaz de parar na porta de um bar, olhar para dentro, e dois segundos depois pensar: “Aqui não”, e seguir em frente.
Ser urbanóide é ver poesia em nomes de lojas, de salões de manicure, de borracharias, de oficinas, de botequins pé-sujo, de malharias.
Ser urbanóide é atravessar uma rua larga de olho no carro que se aproxima, e à distância negociar direções e velocidades com o motorista.
Ser urbanóide é olhar cada janela de edifício acesa, e mandar uma energia boa para os companheiros de madrugada.
Ser urbanóide é acompanhar todas as crueldades, as explorações e as violências que se praticam na cidade, e não botar na cidade a culpa.
Ser urbanóide é passar uma tarde numa biblioteca só para saber quem foi Fulano de Tal que deu nome à rua em que a gente mora.
Ser urbanóide é ir à feira livre, voltar carregado de sacolas, deixá-las em casa, e depois voltar, só pra curtir a feira.
Ser urbanóide é ter três ou quatro percursos diferentes para ir e para voltar dos lugares habituais – para colorir a rotina.
Ser urbanóide é não se entristecer nem com o outono das demolições nem com a primavera dos projetos imobiliários.
Ser urbanóide é perceber em si mesmo, de repente, uma certa rivalidade com esse pessoal do bairro vizinho, quem pensam eles que são?!
Ser urbanóide é ver numa exposição a foto de uma parede e lembrar onde fica.
Ser urbanóide é chegar numa metrópole desconhecida, deixar as coisas no hotel, e sair andando pelas ruas com olhos de começo de namoro.
Ser urbanóide é cochilar no metrô e acordar pontualmente na estação onde vai descer.
Ser urbanóide é estar numa fila, num vagão de trem, numa sala de espera, olhar todos aqueles rostos e pensar: “Nunca mais estaremos todos juntos novamente”.
Ser urbanóide é ter um sexto sentido sempre ligado para perceber as bicicletas que surgem na contramão ou cruzando a calçada.
Ser urbanóide é ter saudade de uma linha de ônibus que foi desativada.
Ser urbanóide é não ter problema para dormir enquanto trinta pessoas cantam Tim Maia a plenos pulmões no bar da esquina.
Ser urbanóide é pedir ao porteiro que receba a encomenda e mande pelo elevador.
Ser urbanóide é ouvir um tiroteio na madrugada e prestar atenção para ver quantos calibres estão envolvidos.
Ser urbanóide é vir pela calçada e atravessar a rua só pra olhar os livros sobre uma lona na calçada oposta.
Ser urbanóide é voltar a uma certa rua trinta anos depois, ver uma certa porta e ter vontade de tocar de novo a campainha.
Ser urbanóide é ter na memória uma agenda instantânea informando eletricista, pedreiro, loja de conveniência, “vende-se gelo”, mecânico, conserto de malas, quentinha caseira.
Ser urbanóide é chegar à faixa de pedestres com o sinal fechado para os carros, mas esperar primeiro que abra para eles, depois que feche de novo, e só então atravessar com segurança.
Ser urbanóide é saber que cidades e florestas morrem e renascem o tempo todo, de um modo tão parecido e tão diferente.
Ser urbanoide é estar andando numa cidade estrangeira e distante, pensando em mil outras coisas, e ao virar uma esquina se deparar com uma cópia fiel de um recanto de uma cidade querida, um lugar que talvez nem exista mais.
sexta-feira, novembro 29
Refeições literárias
Mas (sobretudo a partir do instante em que o bom tempo se instalava em Combray) muito depois que a hora altiva do meio-dia, descida da torre de Santo Hilário que ela armoriava com os doces florões momentâneos de sua coroa sonora, vibrava em torno de nossa mesa, junto ao pão bento, também chegado familiarmente da igreja, nós ainda nos deixávamos ficar sentados diante dos pratos das Mil e Uma Noites, adormentados pelo calor e principalmente pela refeição. Pois, ao fundo permanente de ovos, de costeletas, de batatas, de compotas, de biscoitos, que nem sequer nos anunciava mais, Françoise acrescentava — de acordo com os trabalhos dos campos e pomares, o fruto da pesca, as surpresas do comércio, as amabilidades dos vizinhos e seu próprio gênio inventivo, e de tal forma que nosso cardápio, como essas quatro-folhas que esculpiam no século XIII à entrada das catedrais, refletia de certo modo o ritmo das estações e os episódios da vida — um rodovalho, porque a peixeira lhe garantira que estava fresco, um peru, porque descobrira um esplêndido no mercado de Roussainville-le-Pin, alcachofras com tutano, porque ainda não as preparara dessa maneira, uma perna de carneiro assada, porque o ar livre dá apetite e teria tempo de “baixar” dentro de sete horas, espinafres para variar, damascos, porque constituíam ainda uma raridade, groselhas, porque dali a quinze dias não haveria mais, framboesas, porque o sr. Swann as trouxera expressamente, cerejas, por serem as primeiras que dava a cerejeira do quintal depois de dois anos de esterilidade, o requeijão de que eu tanto gostava outrora, um doce de amêndoas, porque o encomendara na véspera, um brioche, porque era nossa vez de “oferecê-lo”. Depois de tudo, feito expressamente para nós, mas dedicado em particular a meu pai, era-nos oferecido um creme de chocolate, inspiração e atenção pessoal de Françoise, fugaz e leve como uma obra de circunstância onde ela pusera todo o seu talento. Aquele que se recusasse a provar, dizendo: “Já terminei, não tenho mais fome”, ter-se-ia imediatamente rebaixado ao nível desses grosseiros que, até no presente que lhe faz um artista de uma obra sua, examinam o peso e o material, quando o que vale é a intenção e a assinatura. Deixar no prato uma gota que fosse, denotaria a mesma impolidez que se levantar a gente diante do próprio compositor, antes de terminada a audição.
Marcel Proust, "No caminho de Swan"
Marcel Proust, "No caminho de Swan"
Menino de ilha
Às vezes, no calor mais forte, eu pulava de noite a janela com pés de gato e ia deitar-me junto ao mar. Acomodava-me na areia como uma cama fofa e abria as pernas aos alíseos e ao luar: e em breve as frescas mãos da maré cheia vinham coçar meus pés com seus dedos de água.
Era indizivelmente bom. Com um simples olhar podia vigiar a casa, cuja janela deixava apenas encostada; mas por mero escrúpulo. Ninguém nos viria nunca fazer mal. Éramos gente querida na ilha, e a afeição daquela comunidade pobre manifestava-se constantemente em peixe fresco, cestas de caju, sacos de manga-espada. E em breve perdia-me naquela doce confusão de ruídos... o sussurro da maré montante, uma folha seca de amendoeira arrastada pelo vento, o gorgulho de um peixe saltando, a clarineta de meu amigo Augusto, tuberculoso e insone, solando valsas ofegantes na distância. A aragem entrava-me pelos calções, inflava-me a camisa sobre o peito, fazia-me festas nas axilas, eu deixava a areia correr de entre meus dedos sem saber ainda que aquilo era uma forma de cortar o tempo. Mas o tempo ainda não existia para mim; ou só existia nisso que era sempre vivo, nunca morto ou inútil.
Quando não havia luar era mais lindo e misterioso ainda. Porque, com a continuidade da mirada, o céu noturno ia desvendando pouco a pouco todas as suas estrelas, até as mais recônditas, e a negra abóbada acabava por formigar de luzes, como se todos os pirilampos do mundo estivessem luzindo na mais alta esfera. Depois acontecia que o céu se aproximava e eu chegava a distinguir o contorno das galáxias, e estrelas cadentes precipitavam-se como loucas em direção a mim com as cabeleiras soltas e acabavam por se apagar no enorme silêncio do Infinito. E era uma tal multidão de astros a tremeluzir que, juro, às vezes tinha a impressão de ouvir o burburinho infantil de suas vozes. E logo voltava o mar com o seu marulhar ilhéu, e um peixe pulava perto, e um cão latia, e uma folha seca de amendoeira era arrastada pelo vento, e se ouvia a tosse de Augusto longe, longe. Eu olhava a casa, não havia ninguém, meus pais dormiam, minhas irmãs dormiam, meu irmão pequeno dormia mais que todos. Era indizivelmente bom.
Havia ocasiões em que adormecia sem dormir, numa semiconsciência dos carinhos do vento e da água no meu rosto e nos meus pés. É que vinha-me do Infinito uma tão grande paz e um tal sentimento de poesia que eu me entregava não a um sono, que não há sono diante do Infinito, mas a um lacrimoso abandono que acabava por raptar-me de mim mesmo. E eu ia, coisa volátil, ao sabor dos ventos que me levavam para aquele mar de estrelas, sem forma e corpo e ouvindo o breve cochicho das ondas que vinham desaguar nas minhas pernas.
Mas – como dizê-lo? – era sempre nesses momentos de perigosa inércia, de mística entrega, que a aurora vinha em meu auxílio. Pois a verdade é que, de súbito, eu sentia a sua mão fria pousar sobre minha testa e despertava do meu êxtase. Abria os olhos e lá estava ela sobre o mar pacificado, com seus grandes olhos brancos, suas asas sem ruído e seus seios cor-de-rosa, a mirar-me com um sorriso pálido que ia pouco a pouco desmanchando a noite em cinzas. E eu me levantava, sacudia a areia do meu corpo, dava um beijo de bom-dia na face que ela me entregava, pulava a janela de volta, atravessava a casa com pés de gato e ia dormir direito em minha cama, com um gosto de frio em minha boca.
Vinicius de Moraes, "Para viver um grande amor"
Era indizivelmente bom. Com um simples olhar podia vigiar a casa, cuja janela deixava apenas encostada; mas por mero escrúpulo. Ninguém nos viria nunca fazer mal. Éramos gente querida na ilha, e a afeição daquela comunidade pobre manifestava-se constantemente em peixe fresco, cestas de caju, sacos de manga-espada. E em breve perdia-me naquela doce confusão de ruídos... o sussurro da maré montante, uma folha seca de amendoeira arrastada pelo vento, o gorgulho de um peixe saltando, a clarineta de meu amigo Augusto, tuberculoso e insone, solando valsas ofegantes na distância. A aragem entrava-me pelos calções, inflava-me a camisa sobre o peito, fazia-me festas nas axilas, eu deixava a areia correr de entre meus dedos sem saber ainda que aquilo era uma forma de cortar o tempo. Mas o tempo ainda não existia para mim; ou só existia nisso que era sempre vivo, nunca morto ou inútil.
Quando não havia luar era mais lindo e misterioso ainda. Porque, com a continuidade da mirada, o céu noturno ia desvendando pouco a pouco todas as suas estrelas, até as mais recônditas, e a negra abóbada acabava por formigar de luzes, como se todos os pirilampos do mundo estivessem luzindo na mais alta esfera. Depois acontecia que o céu se aproximava e eu chegava a distinguir o contorno das galáxias, e estrelas cadentes precipitavam-se como loucas em direção a mim com as cabeleiras soltas e acabavam por se apagar no enorme silêncio do Infinito. E era uma tal multidão de astros a tremeluzir que, juro, às vezes tinha a impressão de ouvir o burburinho infantil de suas vozes. E logo voltava o mar com o seu marulhar ilhéu, e um peixe pulava perto, e um cão latia, e uma folha seca de amendoeira era arrastada pelo vento, e se ouvia a tosse de Augusto longe, longe. Eu olhava a casa, não havia ninguém, meus pais dormiam, minhas irmãs dormiam, meu irmão pequeno dormia mais que todos. Era indizivelmente bom.
Havia ocasiões em que adormecia sem dormir, numa semiconsciência dos carinhos do vento e da água no meu rosto e nos meus pés. É que vinha-me do Infinito uma tão grande paz e um tal sentimento de poesia que eu me entregava não a um sono, que não há sono diante do Infinito, mas a um lacrimoso abandono que acabava por raptar-me de mim mesmo. E eu ia, coisa volátil, ao sabor dos ventos que me levavam para aquele mar de estrelas, sem forma e corpo e ouvindo o breve cochicho das ondas que vinham desaguar nas minhas pernas.
Mas – como dizê-lo? – era sempre nesses momentos de perigosa inércia, de mística entrega, que a aurora vinha em meu auxílio. Pois a verdade é que, de súbito, eu sentia a sua mão fria pousar sobre minha testa e despertava do meu êxtase. Abria os olhos e lá estava ela sobre o mar pacificado, com seus grandes olhos brancos, suas asas sem ruído e seus seios cor-de-rosa, a mirar-me com um sorriso pálido que ia pouco a pouco desmanchando a noite em cinzas. E eu me levantava, sacudia a areia do meu corpo, dava um beijo de bom-dia na face que ela me entregava, pulava a janela de volta, atravessava a casa com pés de gato e ia dormir direito em minha cama, com um gosto de frio em minha boca.
Vinicius de Moraes, "Para viver um grande amor"
Inocência
Perdemos a inocência quando aprendemos a olhar as horas do relógio. O tempo do adulto é um imposto cobrado pela inteligência do mundo, um freio de que fomos libertos na infância e de que podemos nos livrar ainda em estados excepcionais de paixão, de contemplação puríssima, de intoxicação e de loucura.
Paulo Mendes Campos, "De um caderno cinzento"
e
Felicidade não se compra. Nem mesmo pela internet
Ele adorava o sofá de dois lugares que estava no living. A mulher odiava o sofá de dois lugares que estava no living. Ele adorava o sofá de dois lugares que estava no living porque era ali que, todas as noites, se instalava para assistir a TV até altas horas. A mulher odiava o sofá de dois lugares que estava no living porque era ali que, todas as noites, o marido se instalava para assistir a TV até altas horas. E, vendo TV, o marido não queria fazer programas, não queria passear, não queria nem conversar. Em desespero, ela ameaça vender o sofá por qualquer preço.
O marido não acreditava. Porque a mulher não tinha jeito para negociar. Não sabia falar com as pessoas, não sabia apresentar seu produto. Se dependesse de sua habilidade para a venda, o sofá de dois lugares permaneceria no living por muitos e muitos anos. De modo que ele ficou muito surpreso quando, voltando do trabalho, não encontrou o sofá. Vendi, disse a mulher, triunfante. Ele não quis acreditar, achou que fosse brincadeira. Ela explicou: graças à internet, tinha vendido a uma pessoa que nem conhecia, que enviara um portador para entregar o dinheiro e levar o sofá.
Aquilo deixou-o furioso. Queria o seu sofá de volta e exigiu da mulher o nome do comprador. Ela simplesmente se recusou a revelar esse segredo.
Brigaram e, naquela noite, ele dormiu no outro quarto do apartamento, vazio desde que a filha tinha casado. De madrugada, uma idéia lhe ocorreu. Correu a verificar os e-mails da esposa e, de fato, ali estava a mensagem enviada pela compradora, com nome, endereço, telefone.
No dia seguinte, ligou para essa mulher, disse que precisava vê-la com urgência: assunto ligado à compra do sofá. Ela relutou, mas consentiu em recebê-lo. Ele foi até a casa, num bairro afastado. E ali estava a mulher, ainda jovem, a esperá-lo. No living, diante da TV, o sofá de dois lugares.
Que ele quis comprar de volta. Ela recusou; gostara do sofá, não o venderia. Ele recorreu a todos os argumentos, sem resultado, quis até pagar o dobro da quantia que ela havia despendido. Nada, ela mostrava-se irredutível, e ele acabou desistindo.
Antes de ir embora, porém, resolveu perguntar quem sentava ao lado dela no sofá.
Ninguém, foi a resposta. Divorciada, estava sozinha havia algum tempo. Comprara um sofá de dois lugares porque tinha esperança de, um dia, arranjar um companheiro.
Ele tem ido à casa da nova proprietária do sofá. Senta-se ao lado dela para ver TV, coisa que adora. No começo, ela gostava da companhia.
Mas agora já não acha o arranjo tão bom: o homem não quer fazer programas, não quer passear, não quer nem conversar.
Ela pensa seriamente em vender o sofá. Não é muito hábil nessas coisas, mas tem certeza de que, através da internet, resolverá o problema.
O marido não acreditava. Porque a mulher não tinha jeito para negociar. Não sabia falar com as pessoas, não sabia apresentar seu produto. Se dependesse de sua habilidade para a venda, o sofá de dois lugares permaneceria no living por muitos e muitos anos. De modo que ele ficou muito surpreso quando, voltando do trabalho, não encontrou o sofá. Vendi, disse a mulher, triunfante. Ele não quis acreditar, achou que fosse brincadeira. Ela explicou: graças à internet, tinha vendido a uma pessoa que nem conhecia, que enviara um portador para entregar o dinheiro e levar o sofá.
Aquilo deixou-o furioso. Queria o seu sofá de volta e exigiu da mulher o nome do comprador. Ela simplesmente se recusou a revelar esse segredo.
Brigaram e, naquela noite, ele dormiu no outro quarto do apartamento, vazio desde que a filha tinha casado. De madrugada, uma idéia lhe ocorreu. Correu a verificar os e-mails da esposa e, de fato, ali estava a mensagem enviada pela compradora, com nome, endereço, telefone.
No dia seguinte, ligou para essa mulher, disse que precisava vê-la com urgência: assunto ligado à compra do sofá. Ela relutou, mas consentiu em recebê-lo. Ele foi até a casa, num bairro afastado. E ali estava a mulher, ainda jovem, a esperá-lo. No living, diante da TV, o sofá de dois lugares.
Que ele quis comprar de volta. Ela recusou; gostara do sofá, não o venderia. Ele recorreu a todos os argumentos, sem resultado, quis até pagar o dobro da quantia que ela havia despendido. Nada, ela mostrava-se irredutível, e ele acabou desistindo.
Antes de ir embora, porém, resolveu perguntar quem sentava ao lado dela no sofá.
Ninguém, foi a resposta. Divorciada, estava sozinha havia algum tempo. Comprara um sofá de dois lugares porque tinha esperança de, um dia, arranjar um companheiro.
Ele tem ido à casa da nova proprietária do sofá. Senta-se ao lado dela para ver TV, coisa que adora. No começo, ela gostava da companhia.
Mas agora já não acha o arranjo tão bom: o homem não quer fazer programas, não quer passear, não quer nem conversar.
Ela pensa seriamente em vender o sofá. Não é muito hábil nessas coisas, mas tem certeza de que, através da internet, resolverá o problema.
Moacyr Scliar
quinta-feira, novembro 28
O meu avô
O meu avô sempre dizia que o melhor da vida haveria de ser ainda um mistério e que o importante era seguir procurando. Estar vivo é procurar, explicava.
Quase usava lupas e binóculos, mapas e ferramentas de escavação, igual a um detective cheio de trabalho e talentos. Tinha o ar de um caçador de tesouros e, de todo o modo, os seus olhos reluziam de uma riqueza profunda. Percebíamos isso no seu abraço. Eu dizia: dentro do abraço do avô. Porque ele se tornava uma casa inteira e acolhia. Abraçar assim, talvez porque sou magro e ainda pequeno, é para mim um mistério tremendo.
Valter Hugo Mãe, "As mais belas coisas do mundo"
Quase usava lupas e binóculos, mapas e ferramentas de escavação, igual a um detective cheio de trabalho e talentos. Tinha o ar de um caçador de tesouros e, de todo o modo, os seus olhos reluziam de uma riqueza profunda. Percebíamos isso no seu abraço. Eu dizia: dentro do abraço do avô. Porque ele se tornava uma casa inteira e acolhia. Abraçar assim, talvez porque sou magro e ainda pequeno, é para mim um mistério tremendo.
Valter Hugo Mãe, "As mais belas coisas do mundo"
A cidade
Dizes: vou partir
Para outras terras, para outros mares
Para uma cidade tão bela
Como esta nunca foi nem pode ser
Esta cidade onde a cada passo se aperta
O nó corredio: coração sepultado na tumba de um corpo,
Coração inútil, gasto, quanto tempo ainda
Será preciso ficar confinado entre as paredes
Das ruelas de um espírito banal?
Para onde quer que olhe
Só vejo as sombras ruínas da minha vida.
Tantos anos vividos, desperdiçados
Tantos anos perdidos.
Não existe outra terra, meu amigo, nem outro mar,
Porque a cidade irá atrás de ti; as mesmas ruas
Cruzam sem fim as mesmas ruas; os mesmos
Subúrbios do espírito passam da juventude à velhice,
E tu perderás os teus dentes e os teus cabelos
Dentro da mesma casa. A cidade é uma armadilha.
Só este porto te espera,
E nenhum navio te levará onde não podes.
Ah! então não vês que te desgraçaste neste lugar miserável
E que a tua vida já não vale nada,
Nem que vás procurá-la nos confins da terra?
Konstantinos Kaváfis, "Ulisseia"
Para outras terras, para outros mares
Para uma cidade tão bela
Como esta nunca foi nem pode ser
Esta cidade onde a cada passo se aperta
O nó corredio: coração sepultado na tumba de um corpo,
Coração inútil, gasto, quanto tempo ainda
Será preciso ficar confinado entre as paredes
Das ruelas de um espírito banal?
Para onde quer que olhe
Só vejo as sombras ruínas da minha vida.
Tantos anos vividos, desperdiçados
Tantos anos perdidos.
Não existe outra terra, meu amigo, nem outro mar,
Porque a cidade irá atrás de ti; as mesmas ruas
Cruzam sem fim as mesmas ruas; os mesmos
Subúrbios do espírito passam da juventude à velhice,
E tu perderás os teus dentes e os teus cabelos
Dentro da mesma casa. A cidade é uma armadilha.
Só este porto te espera,
E nenhum navio te levará onde não podes.
Ah! então não vês que te desgraçaste neste lugar miserável
E que a tua vida já não vale nada,
Nem que vás procurá-la nos confins da terra?
Konstantinos Kaváfis, "Ulisseia"
Vista cansada
Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa ideia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.
Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.
Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima ideia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.
Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.
Otto Lara Resende
Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.
Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.
Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima ideia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.
Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.
Otto Lara Resende
Hoje não escrevo
Chega um dia de falta de assunto. Ou, mais propriamente, de falta de apetite para os milhares de assuntos.
Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, purê de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.
O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam para depois comentá-los com a maior cara-de-pau (“com isenção de largo espectro”, como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego – às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles.
Ah, você participa com palavras? Sua escrita – por hipótese – transforma a cara das coisas, há capítulos da História devidos à sua maneira de ajuntar substantivos, adjetivos, verbos? Mas foram os outros, crédulos, sugestionáveis, que fizeram o acontecimento. Isso de escrever O Capital é uma coisa, derrubar as estruturas, na raça, é outra. E nem sequer você escreveu O Capital. Não é todos os dias que se mete uma idéia na cabeça do próximo, por via gramatical. E a regra situa no mesmo saco escrever e abster-se. Vazio, antes e depois da operação.
Claro, você aprovou as valentes ações dos outros, sem se dar ao incômodo de praticá-las. Desaprovou as ações nefandas, e dispensou-se de corrigir-lhe os efeitos. Assim é fácil manter a consciência limpa. Eu queria ver sua consciência faiscando de limpeza é na ação, que costuma sujar os dedos e mais alguma coisa. Ao passo que, em sua protegida pessoa, eles apenas se tisnam quando é hora de mudar a fita no carretel.
E então vem o tédio. De Senhor dos Assuntos, passar a espectador enfastiado de espetáculo. Tantos fatos simultâneos e entrechocantes, o absurdo promovido a regra de jogo, excesso de vibração, dificuldade em abranger a cena com o simples par de olhos e uma fatigada atenção. Tudo se repete na linha do imprevisto, pois ao imprevisto sucede outro, num mecanismo de monotonia… explosiva. Na hora ingrata de escrever, como optar entre as variedades de insólito? E que dizer, que não seja invalidado pelo acontecimento de logo mais, ou de agora mesmo? Que sentir ou ruminar, se não nos concedem tempo para isso entre dois acontecimentos que desabam como meteoritos sobre a mesa? Nem sequer você pode lamentar-se pela incomodidade profissional. Não é redator de boletim político, não é comentarista internacional, colunista especializado, não precisa esgotar os temas, ver mais longe do que o comum, manter-se afiado como a boa peixeira pernambucana. Você é o marginal ameno, sem responsabilidade na instrução ou orientação do público, não há razão para aborrecer-se com os fatos e a leve obrigação de confeitá-los ou temperá-los à sua maneira. Que é isso, rapaz. Entretanto, aí está você, casmurro e indisposto para a tarefa de encher o papel de sinaizinhos pretos. Concluiu que não há assunto, quer dizer: que não há para você, porque ao assunto deve corresponder certo número de sinaizinhos, e você não sabe ir além disso, não corta de verdade a barriga da vida, não revolve os intestinos da vida, fica em sua cadeira, assuntando, assuntando…
Então hoje não tem crônica.
Carlos Drummond de Andrade
Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, purê de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.
O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam para depois comentá-los com a maior cara-de-pau (“com isenção de largo espectro”, como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego – às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles.
Ah, você participa com palavras? Sua escrita – por hipótese – transforma a cara das coisas, há capítulos da História devidos à sua maneira de ajuntar substantivos, adjetivos, verbos? Mas foram os outros, crédulos, sugestionáveis, que fizeram o acontecimento. Isso de escrever O Capital é uma coisa, derrubar as estruturas, na raça, é outra. E nem sequer você escreveu O Capital. Não é todos os dias que se mete uma idéia na cabeça do próximo, por via gramatical. E a regra situa no mesmo saco escrever e abster-se. Vazio, antes e depois da operação.
Claro, você aprovou as valentes ações dos outros, sem se dar ao incômodo de praticá-las. Desaprovou as ações nefandas, e dispensou-se de corrigir-lhe os efeitos. Assim é fácil manter a consciência limpa. Eu queria ver sua consciência faiscando de limpeza é na ação, que costuma sujar os dedos e mais alguma coisa. Ao passo que, em sua protegida pessoa, eles apenas se tisnam quando é hora de mudar a fita no carretel.
E então vem o tédio. De Senhor dos Assuntos, passar a espectador enfastiado de espetáculo. Tantos fatos simultâneos e entrechocantes, o absurdo promovido a regra de jogo, excesso de vibração, dificuldade em abranger a cena com o simples par de olhos e uma fatigada atenção. Tudo se repete na linha do imprevisto, pois ao imprevisto sucede outro, num mecanismo de monotonia… explosiva. Na hora ingrata de escrever, como optar entre as variedades de insólito? E que dizer, que não seja invalidado pelo acontecimento de logo mais, ou de agora mesmo? Que sentir ou ruminar, se não nos concedem tempo para isso entre dois acontecimentos que desabam como meteoritos sobre a mesa? Nem sequer você pode lamentar-se pela incomodidade profissional. Não é redator de boletim político, não é comentarista internacional, colunista especializado, não precisa esgotar os temas, ver mais longe do que o comum, manter-se afiado como a boa peixeira pernambucana. Você é o marginal ameno, sem responsabilidade na instrução ou orientação do público, não há razão para aborrecer-se com os fatos e a leve obrigação de confeitá-los ou temperá-los à sua maneira. Que é isso, rapaz. Entretanto, aí está você, casmurro e indisposto para a tarefa de encher o papel de sinaizinhos pretos. Concluiu que não há assunto, quer dizer: que não há para você, porque ao assunto deve corresponder certo número de sinaizinhos, e você não sabe ir além disso, não corta de verdade a barriga da vida, não revolve os intestinos da vida, fica em sua cadeira, assuntando, assuntando…
Então hoje não tem crônica.
Carlos Drummond de Andrade
terça-feira, novembro 26
Mistérios da alma humana
O que vou contar continua ainda um mistério para mim. Só sei mesmo que aconteceu porque foi comigo que aconteceu. E até hoje mal entendo.
Eu sofrera um grave acidente de incêndio e, como a área de queimadura fora muito extensa, eu ainda estava dentro dos três dias que estive entre a vida e a morte. As dores eram tais que a enfermeira me disse: “Sei que são tão fortes que justificariam morfina, mas a senhora não pode se intoxicar, tem que suportar praticamente a frio.” Foi nessa espécie de atmosfera que o telefone tocou, a enfermeira atendeu e me perguntou alto se eu podia falar com a Senhora X. Eu nem tinha força, mas como a Senhora X devia ter ouvido a enfermeira fazer a pergunta, eu não podia mais dizer que não estava em condições de querer falar. A enfermeira segurou o telefone junto de meu ouvido – minhas duas mãos também estavam enfaixadas – e eu disse “alô” à Senhora X.
– E eu que pensei que você só pegava fogo nos outros! E não sabia que você também pega fogo! Espero, ouviu? espero que arda bastante!
Atônita e, no entanto, não sei por quê, tranquila, respondi como para acalmar um louco:
– Não se preocupe. Está ardendo bastante.
Isso pareceu realmente acalmar a Senhora X. E, como se assegurada de que eu estava sofrendo, mudou de tom de voz e com naturalidade disse que seu marido me mandava um abraço, que ambos me desejavam uma recuperação rápida. Civilizadamente agradeci.
Mas estava surpreendida. Por que aquela manifestação súbita de um ódio profundo do qual eu nunca sequer havia suspeitado? Devia ser um ódio inconsciente, ela própria não sabia que me odiava, tanto que me convidava e demonstrava claramente sinais de agrado com minha presença.
Falei desse telefonema a uma pessoa que entende muito de alma humana, e me foi explicado que frequentemente, diante de uma desgraça súbita, acontece de vir à tona de uma pessoa o que ela tem de melhor ou o que ela tem de pior.
Jamais, porém, esquecerei o timbre terrível daquela voz ao me desejar sofrimento: aquela, pois, era também uma das vozes humanas…
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
Eu sofrera um grave acidente de incêndio e, como a área de queimadura fora muito extensa, eu ainda estava dentro dos três dias que estive entre a vida e a morte. As dores eram tais que a enfermeira me disse: “Sei que são tão fortes que justificariam morfina, mas a senhora não pode se intoxicar, tem que suportar praticamente a frio.” Foi nessa espécie de atmosfera que o telefone tocou, a enfermeira atendeu e me perguntou alto se eu podia falar com a Senhora X. Eu nem tinha força, mas como a Senhora X devia ter ouvido a enfermeira fazer a pergunta, eu não podia mais dizer que não estava em condições de querer falar. A enfermeira segurou o telefone junto de meu ouvido – minhas duas mãos também estavam enfaixadas – e eu disse “alô” à Senhora X.
O que se seguiu é que me deixa estupefata. Esta senhora, que sempre havia me tratado especialmente bem, tendo inclusive me convidado para jantar em sua casa – essa senhora, ao meu “alô”, teve, imediatamente, uma verdadeira explosão de voz que nem parecia lhe pertencer, e foi com essa voz gritante que disse:
– E eu que pensei que você só pegava fogo nos outros! E não sabia que você também pega fogo! Espero, ouviu? espero que arda bastante!
Atônita e, no entanto, não sei por quê, tranquila, respondi como para acalmar um louco:
– Não se preocupe. Está ardendo bastante.
Isso pareceu realmente acalmar a Senhora X. E, como se assegurada de que eu estava sofrendo, mudou de tom de voz e com naturalidade disse que seu marido me mandava um abraço, que ambos me desejavam uma recuperação rápida. Civilizadamente agradeci.
Mas estava surpreendida. Por que aquela manifestação súbita de um ódio profundo do qual eu nunca sequer havia suspeitado? Devia ser um ódio inconsciente, ela própria não sabia que me odiava, tanto que me convidava e demonstrava claramente sinais de agrado com minha presença.
Falei desse telefonema a uma pessoa que entende muito de alma humana, e me foi explicado que frequentemente, diante de uma desgraça súbita, acontece de vir à tona de uma pessoa o que ela tem de melhor ou o que ela tem de pior.
Sinceramente perdoei a Senhora X, não por bondade minha, mas como quem perdoa uma pessoa que não sabe o que faz.
Jamais, porém, esquecerei o timbre terrível daquela voz ao me desejar sofrimento: aquela, pois, era também uma das vozes humanas…
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
'A Montanha Mágica': o mundo à beira da guerra
Os quartos são confortáveis, a vista é estupenda, a comida, deliciosa. Aconchegados sob cobertores de lã, os abastados hóspedes passam o dia nas espreguiçadeiras das varandas, em repouso.
Bem-vindos ao Berghof, um sanatório de luxo para doenças respiratórias, isolado nos Alpes Suíços, onde pacientes de tuberculose apostam na cura pelo ar fresco das montanhas. Esse é o cenário escolhido pelo autor alemão Thomas Mann (1875-1955) para seu romance A Montanha Mágica (Der Zauberberg).
A história começa no ano de 1907: prestes a iniciar a carreira de engenheiro naval, Hans Castorp, filho de um comerciante de Hamburgo, vai visitar o primo doente no Berghof. Originalmente, só pretendia passar lá três semanas, que no entanto acabam virando sete anos.
O curioso é que o próprio Castorp está saudável, "mas ele é como que sugado pela vida no sanatório", explica o especialista em literatura Kai Sina. "Os pacientes, seus debates filosóficos e seus costumes, as rígidas rotinas de saúde, as refeições luxuosas e a obsessiva medição da febre: ele se torna parte desse mundo."
O sanatório totalmente isolado é um microcosmo que revela a crise de uma sociedade em transformação. A virada para o século 20 é uma época de reviravoltas radicais na Europa: a industrialização modificou a vida fundamentalmente, a ciência coloca cada vez mais em xeque as certezas religiosas, e movimentos nacionalistas e socialistas avançam.
A perda dos valores tradicionais e a desorientação resultam em tensões e agressão, também entre a ilustre roda do Berghof: "Estava no ar", adverte o romance. Hans Wisskirchen, presidente da Sociedade Thomas Mann, analisa esse sentimento: "Sente-se um tremendo mal-estar, um medo do futuro. O pessoal de serviço é insultado, há pancadarias, nascem as ideias mais loucas, as pessoas literalmente perdem as estribeiras."
Se não fosse a linguagem antiquada, daria para pensar que o autor é do século 21. Pois também hoje em dia se percebe por toda parte "a grande irritabilidade, o ponto de ruptura", compara Caren Heuer, diretora da Casa Buddenbrook, a antiga residência dos avós do escritor em Lübeck. "Basta sintonizar um talkshow de domingo à noite qualquer. A gente vê como os participantes se interrompem, não se escutam. O que importa é despejar opiniões."
Também o herói de A Montanha Mágica encontra defensores fanáticos das mais diversas ideologias, que se combatem ferrenhamente. De um lado está o humanista Lodovico Settembrini; de outro, o jesuíta ultrarreacionário Leo Naphta. Em seus diálogos, liberalismo e crença no progresso se chocam com o entusiasmo por um regime totalitário como única forma correta de sociedade.
Ambos competem pelas atenções de Castorp, que se vê dividido entre as visões de mundo conflitantes. No fim, há um duelo a pistola entre os dois rivais, em que Settembrini atira intencionalmente para o alto. Incapaz de suportar a desonra, Naphta se suicida. E a onda de violência se desencadeia.
Ao escrever A Montanha Mágica, o escritor natural do norte da Alemanha tomou como modelo sua própria mutação política. Ele colocara as primeiras linhas no papel em 1913, só concluindo 12 anos mais tarde, interrompido pela Primeira Guerra Mundial. De início, era belicista convicto, explica Sina.
"Thomas Mann se deixou contagiar pela euforia pró-guerra que então ocupava tantos intelectuais, artistas e autores. E em 1918, percebeu que lutara do lado errado." Daí em diante, tornou-se um dos opositores mais determinados do fascismo.
"O que mais me fascina em Mann é a coragem de autorrevisão, sua disposição honesta e íntegra de colocar repetidamente no banco de testes posicionamentos antes tomados. E A Montanha Mágica ilustra justamente isso."
Instituída em 1918, a República de Weimar foi a primeira tentativa de uma verdadeira democracia parlamentar na Alemanha, encerrada em 1933 com a tomada do poder pelos nazistas.
Tudo isso reverbera no romance de Mann: nesse mesmo ano ele abandonou o país, indo para a Suíça com a família. Expatriado em 1936, de 1938 a 1952 morou nos Estados Unidos. Em seguida retornou à Suíça, e batalhou pela tolerância e a dignidade humana até sua morte, em 1955.
Difícil acreditar que de início o autor só pretendia escrever um conto humorístico, como contraparte à novela Morte em Veneza. Ele escolheu um sanatório como local da trama porque em 1912 sua esposa, Katia, teve que passar três semanas numa clínica do gênero, devido a um diagnóstico de tuberculose.
"Isso é que é louco, que histórias assim tão grandes – sobre as quais a gente ainda fala hoje, e pensa que ele tenha ficado pensando anos a fio 'como é que eu vou fazer isso' – que elas tenham sido acaso", comenta Wisskirchen, da Sociedade Thomas Mann.
O resultado foi um romance do século de mais de mil páginas. Mas A Montanha Mágica trata não só de ideologias, e sim também da morte – afinal, a maioria dos internos só saía do sanatório no caixão (na época não se usavam antibióticos). E, por contraposição, trata também uma fome desenfreada de viver e, é claro, do amor.
Hans Castorp se apaixona pela misteriosa russa Claudia Chauchat, que lhe concede uma única noite de amor. Ela lhe lembra um camarada da escola, com seus "olhos quirguizes". Para o crítico literário Kai Sina, aí Mann alude a suas próprias inclinações homoeróticas.
"A questão de o que é um homem, o que é uma mulher, o que é masculino, o que é feminino e o que, em cada caso, é percebido como eroticamente atraente: aqui, tudo isso está como que flutuando, de certo modo."
Publicamente, o futuro Nobel da Literatura era um digno cidadão heterossexual, com esposa e seis filhos. A única possibilidade de viver seu desejo por outros homens – se havia alguma – era em segredo. E em seus livros.
Talvez Castorp tivesse esperanças de novos favores da bela russa, mas aí a Primeira Guerra Mundial irrompe, e os pacientes debandam do Berghof. O protagonista se alista num regimento de voluntários, seu rastro se perde no campo de batalha. Ao fim de A Montanha Mágica, Mann pergunta: "Será que dessa festa mundial da morte [...] um dia o amor emergirá?"
Publicada pela primeira vez em alemão em novembro de 1924 e traduzida em 27 idiomas, a obra se tornou um clássico literário mundial, que nada perdeu de sua força e pertinência. Isabel García Adánez, que a adaptou para o espanhol, resume: "Um século se passou, e nós continuamos sendo os mesmos, e resolvemos conflitos através de guerras."
Para quem tenha dúvida sobre a atualidade do texto, a tradutora acrescenta: "Trata-se de coisas muito sérias, mas o livro, em si, é uma experiência prazerosa. E não é preciso três títulos de doutor para ter acesso a Thomas Mann: ele é cheio de ironia e humor."
Bem-vindos ao Berghof, um sanatório de luxo para doenças respiratórias, isolado nos Alpes Suíços, onde pacientes de tuberculose apostam na cura pelo ar fresco das montanhas. Esse é o cenário escolhido pelo autor alemão Thomas Mann (1875-1955) para seu romance A Montanha Mágica (Der Zauberberg).
A história começa no ano de 1907: prestes a iniciar a carreira de engenheiro naval, Hans Castorp, filho de um comerciante de Hamburgo, vai visitar o primo doente no Berghof. Originalmente, só pretendia passar lá três semanas, que no entanto acabam virando sete anos.
O curioso é que o próprio Castorp está saudável, "mas ele é como que sugado pela vida no sanatório", explica o especialista em literatura Kai Sina. "Os pacientes, seus debates filosóficos e seus costumes, as rígidas rotinas de saúde, as refeições luxuosas e a obsessiva medição da febre: ele se torna parte desse mundo."
O sanatório totalmente isolado é um microcosmo que revela a crise de uma sociedade em transformação. A virada para o século 20 é uma época de reviravoltas radicais na Europa: a industrialização modificou a vida fundamentalmente, a ciência coloca cada vez mais em xeque as certezas religiosas, e movimentos nacionalistas e socialistas avançam.
A perda dos valores tradicionais e a desorientação resultam em tensões e agressão, também entre a ilustre roda do Berghof: "Estava no ar", adverte o romance. Hans Wisskirchen, presidente da Sociedade Thomas Mann, analisa esse sentimento: "Sente-se um tremendo mal-estar, um medo do futuro. O pessoal de serviço é insultado, há pancadarias, nascem as ideias mais loucas, as pessoas literalmente perdem as estribeiras."
Se não fosse a linguagem antiquada, daria para pensar que o autor é do século 21. Pois também hoje em dia se percebe por toda parte "a grande irritabilidade, o ponto de ruptura", compara Caren Heuer, diretora da Casa Buddenbrook, a antiga residência dos avós do escritor em Lübeck. "Basta sintonizar um talkshow de domingo à noite qualquer. A gente vê como os participantes se interrompem, não se escutam. O que importa é despejar opiniões."
Também o herói de A Montanha Mágica encontra defensores fanáticos das mais diversas ideologias, que se combatem ferrenhamente. De um lado está o humanista Lodovico Settembrini; de outro, o jesuíta ultrarreacionário Leo Naphta. Em seus diálogos, liberalismo e crença no progresso se chocam com o entusiasmo por um regime totalitário como única forma correta de sociedade.
Ambos competem pelas atenções de Castorp, que se vê dividido entre as visões de mundo conflitantes. No fim, há um duelo a pistola entre os dois rivais, em que Settembrini atira intencionalmente para o alto. Incapaz de suportar a desonra, Naphta se suicida. E a onda de violência se desencadeia.
Ao escrever A Montanha Mágica, o escritor natural do norte da Alemanha tomou como modelo sua própria mutação política. Ele colocara as primeiras linhas no papel em 1913, só concluindo 12 anos mais tarde, interrompido pela Primeira Guerra Mundial. De início, era belicista convicto, explica Sina.
"Thomas Mann se deixou contagiar pela euforia pró-guerra que então ocupava tantos intelectuais, artistas e autores. E em 1918, percebeu que lutara do lado errado." Daí em diante, tornou-se um dos opositores mais determinados do fascismo.
"O que mais me fascina em Mann é a coragem de autorrevisão, sua disposição honesta e íntegra de colocar repetidamente no banco de testes posicionamentos antes tomados. E A Montanha Mágica ilustra justamente isso."
Instituída em 1918, a República de Weimar foi a primeira tentativa de uma verdadeira democracia parlamentar na Alemanha, encerrada em 1933 com a tomada do poder pelos nazistas.
Tudo isso reverbera no romance de Mann: nesse mesmo ano ele abandonou o país, indo para a Suíça com a família. Expatriado em 1936, de 1938 a 1952 morou nos Estados Unidos. Em seguida retornou à Suíça, e batalhou pela tolerância e a dignidade humana até sua morte, em 1955.
Difícil acreditar que de início o autor só pretendia escrever um conto humorístico, como contraparte à novela Morte em Veneza. Ele escolheu um sanatório como local da trama porque em 1912 sua esposa, Katia, teve que passar três semanas numa clínica do gênero, devido a um diagnóstico de tuberculose.
"Isso é que é louco, que histórias assim tão grandes – sobre as quais a gente ainda fala hoje, e pensa que ele tenha ficado pensando anos a fio 'como é que eu vou fazer isso' – que elas tenham sido acaso", comenta Wisskirchen, da Sociedade Thomas Mann.
O resultado foi um romance do século de mais de mil páginas. Mas A Montanha Mágica trata não só de ideologias, e sim também da morte – afinal, a maioria dos internos só saía do sanatório no caixão (na época não se usavam antibióticos). E, por contraposição, trata também uma fome desenfreada de viver e, é claro, do amor.
Hans Castorp se apaixona pela misteriosa russa Claudia Chauchat, que lhe concede uma única noite de amor. Ela lhe lembra um camarada da escola, com seus "olhos quirguizes". Para o crítico literário Kai Sina, aí Mann alude a suas próprias inclinações homoeróticas.
"A questão de o que é um homem, o que é uma mulher, o que é masculino, o que é feminino e o que, em cada caso, é percebido como eroticamente atraente: aqui, tudo isso está como que flutuando, de certo modo."
Publicamente, o futuro Nobel da Literatura era um digno cidadão heterossexual, com esposa e seis filhos. A única possibilidade de viver seu desejo por outros homens – se havia alguma – era em segredo. E em seus livros.
Talvez Castorp tivesse esperanças de novos favores da bela russa, mas aí a Primeira Guerra Mundial irrompe, e os pacientes debandam do Berghof. O protagonista se alista num regimento de voluntários, seu rastro se perde no campo de batalha. Ao fim de A Montanha Mágica, Mann pergunta: "Será que dessa festa mundial da morte [...] um dia o amor emergirá?"
Publicada pela primeira vez em alemão em novembro de 1924 e traduzida em 27 idiomas, a obra se tornou um clássico literário mundial, que nada perdeu de sua força e pertinência. Isabel García Adánez, que a adaptou para o espanhol, resume: "Um século se passou, e nós continuamos sendo os mesmos, e resolvemos conflitos através de guerras."
Para quem tenha dúvida sobre a atualidade do texto, a tradutora acrescenta: "Trata-se de coisas muito sérias, mas o livro, em si, é uma experiência prazerosa. E não é preciso três títulos de doutor para ter acesso a Thomas Mann: ele é cheio de ironia e humor."
Eu vim
Eu não nasci no começo desse século.
Eu nasci no plano do eterno.
Eu nasci de mil vidas superpostas.
Nasci de mil ternuras desdobradas.
Eu vim para conhecer o mal e o bem.
E para separar o mal e o bem.
Eu vim para amar e ser desamado.
Murilo Mendes
Eu nasci no plano do eterno.
Eu nasci de mil vidas superpostas.
Nasci de mil ternuras desdobradas.
Eu vim para conhecer o mal e o bem.
E para separar o mal e o bem.
Eu vim para amar e ser desamado.
Murilo Mendes
De sol, ainda que só um pedacinho
Hoje cedo, bateu-me à porta um jovem pálido e triste que, proclamando-se poeta, me pediu que eu lhe arranjasse ao menos um pedacinho de sol, para mandá-lo à amada, que já não se satisfaz com os versos apaixonadamente escritos por ele. Armei-me de astúcia e dissimulação e disse-lhe que havia algo estranho naquilo, porque eu jamais tive nenhum domínio sobre o sol. Era uma informação errada que ele havia recebido. Consegui convencê-lo disso e respirei aliviado quando ele se foi. Mas tomarei mais cuidado a partir de agora. Se um dia tu, como a amada do infeliz poeta, te aborreceres com meus poemas, que me reste, como forma de homenagear-te, a única que na verdade é digna de ti: a madura excelência do sol pleno.
Ela acorda cedo, abre a janela e chama o sol. Ele, cãozinho obediente, sempre vem, com a cauda abanando. Ela sabe como o sol a ama. Não sabe que nessa hora em que diariamente atrai o sol para o seu terraço eu vou finalmente dormir, depois de mais uma noite de tenebrosa insônia. Ela não sabe como a amo, ou – se sabe – não gosta de meu pelo, de meu focinho, de minha cauda desgraciosa, de meu modo de latir. Nunca me chamará.
Quando o sol vai indo, como agora, lembro-me da mania que tive, quando menino, de colecionar besouros, moscas, tatuzinhos. Tentei várias vezes, na época, enfiar na caixa de fósforos um pouquinho de sol. Não tive sucesso, nunca, mas sinto-me disposto hoje a repetir as tentativas. Talvez guardar um raio de sol seja algo que eu possa juntar a outras conquistas da chamada terceira idade, como o direito de entrar na fila especial no banco e receber aquele sorriso solidário quando dou meus tropeções na rua.
Não, não foste o sol daquela manhã, embora calhasse bem dizer aqui que foste. Eram quase dez horas, já, e o sol, assim como eu, fazia muito que te esperava – ele com seus decantados raios fúlgidos, eu com meu coração alvoroçado.
***
Ela acorda cedo, abre a janela e chama o sol. Ele, cãozinho obediente, sempre vem, com a cauda abanando. Ela sabe como o sol a ama. Não sabe que nessa hora em que diariamente atrai o sol para o seu terraço eu vou finalmente dormir, depois de mais uma noite de tenebrosa insônia. Ela não sabe como a amo, ou – se sabe – não gosta de meu pelo, de meu focinho, de minha cauda desgraciosa, de meu modo de latir. Nunca me chamará.
***
Quando o sol vai indo, como agora, lembro-me da mania que tive, quando menino, de colecionar besouros, moscas, tatuzinhos. Tentei várias vezes, na época, enfiar na caixa de fósforos um pouquinho de sol. Não tive sucesso, nunca, mas sinto-me disposto hoje a repetir as tentativas. Talvez guardar um raio de sol seja algo que eu possa juntar a outras conquistas da chamada terceira idade, como o direito de entrar na fila especial no banco e receber aquele sorriso solidário quando dou meus tropeções na rua.
***
Não, não foste o sol daquela manhã, embora calhasse bem dizer aqui que foste. Eram quase dez horas, já, e o sol, assim como eu, fazia muito que te esperava – ele com seus decantados raios fúlgidos, eu com meu coração alvoroçado.
domingo, novembro 24
Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
Manoel de Barros
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
Manoel de Barros
Dois escritores no quarto andar
A última crônica de meu livro Um pé de milho é sobre a rue Hamelin, de Paris, “onde morreu Proust”, faço notar doutamente, e onde vivi eu. Ao escrever aquela crônica eu ouvira cantar o galo, mas não sabia onde. Digo ali que “onde Proust morreu vive hoje um sindicato”. Era o que eu pensava na ocasião.
Pois que se mordam de inveja: Proust morreu exatamente no apartamento do quarto andar, de número 44, onde eu vivi. Dom Carlos morava, eu já disse, no segundo; pode alegar a seu favor que várias vezes foi ao quarto me visitar, o que o classifica, sem dúvida alguma, como o segundo proustiano do Brasil.
Léon Pierre-Quint conta que Marcel Proust alugou todo o quarto andar do edifício, que então devia ser novo; ali morreu em 1922, ano em que pela primeira vez eu vinha ao Rio de Janeiro, vestido de marinheiro do Encouraçado S. Paulo, trazido pela minha irmã para ver a Exposição do Centenário. Eu tinha nove anos de idade, nunca ouvira falar de Proust e estava longe de supor que 25 anos depois iria dormir na cama em que ele morria aquele ano. Mais pobre do que Marcel, aluguei apenas o grande quarto de frente com uma entradinha e um banheiro, o que me custava 6 mil francos em 1947; não era caro, levando-se em conta que nesse tempo eu era casado.
Conta Leon Pierre-Quint que Proust escolheu um quarto muito frio (não diz qual) temendo que a calefação central fizesse mal à sua asma. Não posso afirmar, mas devia ser o meu quarto; era friíssimo. Imagino quantas vezes ele não se quedou, como eu, a olhar a rua lá em baixo, pela vidraça encardida, a esfregar as mãos de frio. Ah, bem que me parecia suspeita aquela velha cama, bem que notei certos estremecimentos nas cortinas e pressenti, no tapete desbotado, o rasto de antigos pés que o pisaram em noites de insônia, e vagas nódoas de remédio.
Às vezes, pela madrugada — conta o biógrafo — Proust despachava Odilon em um táxi para procurar algum amigo que viesse conversar com ele. Imagino-o perfeitamente à espera, escutando o ruído agônico do pequeno elevador que, no quarto andar, para perigosamente entre dois degraus da escada, uma velha escada sempre às escuras em que os passos reboam absurdamente alto. O amigo o encontrava na cama, com um lenço no pescoço, todo vestido sob os cobertores, com luvas de algodão, vários pares de meias e o plastron branco sobre a camisa amarrotada, no quarto fechado cheirando a remédios, a fumigações, a Proust. Eu positivamente ainda recolhi ali um pouco desse cheiro, dentro do qual foi escrito o último volume de Sodoma e Gomorra; homem bárbaro de um país semibárbaro, me lembro de que muitas vezes combati esse cheiro abrindo de par em par as portas que dão para a sacada e a que dá para o corredor, formando corrente de ar para grande pânico da arrumadeira. Ah, se eu soubesse aproveitar bem aquele cheiro, que coisas sutis não haveria escrito no lugar das croniquinhas triviais que eu mandava para O Globo!
Proust cochilava três dias à custa de veronal, depois ficava três dias desperto à custa de cafeína, falando de literatura, de pintura (esses jovens: Giraudoux, Picasso…), recitando Anatole ou Beaudelaire, discutindo finanças e mundanismo, falando em mandar vir seus livros, seus móveis, suas coisas, o que nunca chegou a fazer.
Também tive minhas noites de insônia na rue Hamelin; não terá ficado dentro de mim um pouco da angústia proustiana? Seria distintíssimo, mas receio que não; três copos de Beaujolais me punham facilmente em boa forma.
De qualquer modo, os jovens intelectuais que quiserem escrever sobre Proust devem me consultar para “fazer ambiente”. Posso, por exemplo, descrever o cubículo em que a concierge lá em baixo (uma velha, positivamente a mesma da era proustiana) está sempre fazendo contas, passando roupa a ferro ou espichando o nariz para ver quem entra, quando não atende ao telefone com sua voz chorosa:
– Passy, soixante-et-un deux fois…
Tomem nota, rapazes: Passy 61-61; é o antigo telefone do Proust e do Braga.
Eu vivia no quarto andar do número 44 e no segundo habitava meu amigo, o escritor gaúcho dom Carlos de Reverbel. Juntos fomos procurar o tal número onde morreu Proust e demos com o tal sindicato. Mas acontece que procurávamos um número errado. O verdadeiro — descobrimos depois — era o nosso 44 mesmo…
Não quero fazer pouco de dom Carlos de Reverbel, mas eu sou um proustiano mais íntimo do que ele. É verdade que meus inimigos assoalham que eu jamais li, no duro mesmo, todos aqueles volumes, embora, em conversas de salão eu seja capaz de discretear sobre Swann, descrever Combray ou Balbec, falar de Albertina ou da senhora duquesa de Guermantes. “O Braga tem as lantejoulas, mas não sabe as coisas” — murmuram os invejosos.
Não quero fazer pouco de dom Carlos de Reverbel, mas eu sou um proustiano mais íntimo do que ele. É verdade que meus inimigos assoalham que eu jamais li, no duro mesmo, todos aqueles volumes, embora, em conversas de salão eu seja capaz de discretear sobre Swann, descrever Combray ou Balbec, falar de Albertina ou da senhora duquesa de Guermantes. “O Braga tem as lantejoulas, mas não sabe as coisas” — murmuram os invejosos.
Pois que se mordam de inveja: Proust morreu exatamente no apartamento do quarto andar, de número 44, onde eu vivi. Dom Carlos morava, eu já disse, no segundo; pode alegar a seu favor que várias vezes foi ao quarto me visitar, o que o classifica, sem dúvida alguma, como o segundo proustiano do Brasil.
Léon Pierre-Quint conta que Marcel Proust alugou todo o quarto andar do edifício, que então devia ser novo; ali morreu em 1922, ano em que pela primeira vez eu vinha ao Rio de Janeiro, vestido de marinheiro do Encouraçado S. Paulo, trazido pela minha irmã para ver a Exposição do Centenário. Eu tinha nove anos de idade, nunca ouvira falar de Proust e estava longe de supor que 25 anos depois iria dormir na cama em que ele morria aquele ano. Mais pobre do que Marcel, aluguei apenas o grande quarto de frente com uma entradinha e um banheiro, o que me custava 6 mil francos em 1947; não era caro, levando-se em conta que nesse tempo eu era casado.
Conta Leon Pierre-Quint que Proust escolheu um quarto muito frio (não diz qual) temendo que a calefação central fizesse mal à sua asma. Não posso afirmar, mas devia ser o meu quarto; era friíssimo. Imagino quantas vezes ele não se quedou, como eu, a olhar a rua lá em baixo, pela vidraça encardida, a esfregar as mãos de frio. Ah, bem que me parecia suspeita aquela velha cama, bem que notei certos estremecimentos nas cortinas e pressenti, no tapete desbotado, o rasto de antigos pés que o pisaram em noites de insônia, e vagas nódoas de remédio.
Posso informar com a maior segurança que, pelo menos nos últimos anos de sua vida, Proust não tomava banho de chuveiro. Não havia chuveiro na casa. Encontrei uma banheira com manchas de sujos imemoriáveis; mandei lavá-la, esfregá-la, flambá-la com álcool, mas nem assim me animei a tomar um banho nela; preferi comprar um chuveirinho de borracha que adaptamos à pia. Eu não podia adivinhar que era a banheira de Proust…
Às vezes, pela madrugada — conta o biógrafo — Proust despachava Odilon em um táxi para procurar algum amigo que viesse conversar com ele. Imagino-o perfeitamente à espera, escutando o ruído agônico do pequeno elevador que, no quarto andar, para perigosamente entre dois degraus da escada, uma velha escada sempre às escuras em que os passos reboam absurdamente alto. O amigo o encontrava na cama, com um lenço no pescoço, todo vestido sob os cobertores, com luvas de algodão, vários pares de meias e o plastron branco sobre a camisa amarrotada, no quarto fechado cheirando a remédios, a fumigações, a Proust. Eu positivamente ainda recolhi ali um pouco desse cheiro, dentro do qual foi escrito o último volume de Sodoma e Gomorra; homem bárbaro de um país semibárbaro, me lembro de que muitas vezes combati esse cheiro abrindo de par em par as portas que dão para a sacada e a que dá para o corredor, formando corrente de ar para grande pânico da arrumadeira. Ah, se eu soubesse aproveitar bem aquele cheiro, que coisas sutis não haveria escrito no lugar das croniquinhas triviais que eu mandava para O Globo!
Proust cochilava três dias à custa de veronal, depois ficava três dias desperto à custa de cafeína, falando de literatura, de pintura (esses jovens: Giraudoux, Picasso…), recitando Anatole ou Beaudelaire, discutindo finanças e mundanismo, falando em mandar vir seus livros, seus móveis, suas coisas, o que nunca chegou a fazer.
Também tive minhas noites de insônia na rue Hamelin; não terá ficado dentro de mim um pouco da angústia proustiana? Seria distintíssimo, mas receio que não; três copos de Beaujolais me punham facilmente em boa forma.
De qualquer modo, os jovens intelectuais que quiserem escrever sobre Proust devem me consultar para “fazer ambiente”. Posso, por exemplo, descrever o cubículo em que a concierge lá em baixo (uma velha, positivamente a mesma da era proustiana) está sempre fazendo contas, passando roupa a ferro ou espichando o nariz para ver quem entra, quando não atende ao telefone com sua voz chorosa:
– Passy, soixante-et-un deux fois…
Tomem nota, rapazes: Passy 61-61; é o antigo telefone do Proust e do Braga.
Rubem Braga, "Ai de ti, Copacabana"
O vento
O vento é um inveterado ledor de tabuletas. E, com toda aquela sua pressa, é exatamente o contrário do leitor apressado: não salta uma só que seja, não perde nenhuma delas, lê e passa — que o seu destino é passar —, mas guarda uma lembrança vertiginosa de todas, principalmente das verdes, das vermelhas, das de azul mais forte, sem esquecer, ó Van Gogh, as tabuletas amarelas...
Que este mundo pode ser que não preste, mas é tão bom de ver!
Mario Quintana, "Caderno H"
Sabes? Passa no vento a alma dos pintores mortos, procurando captar, levar (para onde?) as cores deste mundo.
Que este mundo pode ser que não preste, mas é tão bom de ver!
Mario Quintana, "Caderno H"
A Máquina Extraviada
Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e finalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendo que agora temos aqui uma máquina imponente, que está entusiasmando todo o mundo. Desde que ela chegou — não me lembro quando, não sou muito bom em lembrar datas — quase não temos falado em outra coisa; e da maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos.
A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela. Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que saísse do caminho.
Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e beber.
Muita gente se amontoou na porta mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada.
A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem para que servia. E claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro.
As crianças, que não são de respeitar mistério, como você sabe, trataram de aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem iam pedir?), retiraram a lona e foram subindo em bando pela máquina acima — até hoje ainda sobem, brincam de esconder entre os cilindros e colunas, embaraçam-se nos dentes das engrenagens e fazem um berreiro dos diabos até que apareça alguém para soltá-las; não adiantam ralhos, castigos, pancadas; as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.
Contrariando a opinião de certas pessoas que não quiseram se entusiasmar, e garantiram que em poucos dias a novidade passaria e a ferrugem tomaria conta do metal, o interesse do povo ainda não diminuiu. Ninguém passa pelo largo sem ainda parar diante da máquina, e de cada vez há um detalhe novo a notar.
Até as velhinhas de igreja, que passam de madrugada e de noitinha, tossindo e rezando, viram o rosto para o lado da máquina e fazem uma curvatura discreta, só faltam se benzer. Homens abrutalhados, como aquele Clodoaldo seu conhecido, que se exibe derrubando boi pelos chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito; se um ou outro agarra uma alavanca e sacode com força, ou larga um pontapé numa das colunas, vê-se logo que são bravatas feitas por honra da firma, para manter fama de corajoso.
Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela máquina.
Devemos reconhecer — aliás todos reconhecem — que esse funcionário tem dado boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes também de noite, podemos vê-lo trepado lá por cima espanando cada vão, cada engrenagem, desaparecendo aqui para reaparecer ali, assoviando ou cantando, ativo e incansável. Duas vezes por semana ele aplica kaol [marca de produto utilizado para polir metais] nas partes de metal dourado, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo — e a máquina fica faiscando como joia.
Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no largo, que se um dia ela desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse buscá-la, provando com documentos que tinha direito, eu nem sei o que aconteceria, nem quero pensar.
Ela é o nosso orgulho, e não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância. Fique sabendo que temos recebido delegações de outras cidades, do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem comprá-la. Chegam como quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade, rodeiam, negaceiam, abrem o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o prefeito é de confiança e é esperto, não cai na conversa macia.
Em todas as datas cívicas a máquina é agora uma parte importante das festividades. Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina. Em tempo de eleição todos os candidatos querem fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é possível, alguém tem de sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos. Felizmente a máquina ainda não foi danificada nesses esparramos, e espero que não seja.
A única pessoa que ainda não rendeu homenagem à máquina é o vigário, mas você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda, com a idade. Em todo caso, ainda não tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando; é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas ninguém se impressionou.
Até agora o único acidente de certa gravidade que tivemos foi quando um caixeiro da loja do velho Adudes (aquele velhinho espigado que passa brilhantina no bigode, se lembra?) prendeu a perna numa engrenagem da máquina, isso por culpa dele mesmo. O rapaz andou bebendo em uma serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em cima da máquina. Não se sabe como, ele subiu à plataforma mais alta, de madrugada rolou de lá, caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as rodas. Os gritos acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi preciso arranjar uns barrotes e labancas [ferramenta usada para furar o chão] para desandar as rodas que estavam mordendo a perna do rapaz. Também dessa vez a máquina nada sofreu, felizmente. Sem a perna e sem o emprego, o imprudente rapaz ajuda na conservação da máquina, cuidando das partes mais baixas.
Já existe aqui um movimento para declarar a máquina monumento municipal — por enquanto. O vigário, como sempre, está contra; quer sabe a que seria dedicado o monumento. Você já viu que homem mais azedo?
Dizem que a máquina já tem feito até milagre, mas isso — aqui para nós — eu acho que é exagero de gente supersticiosa, e prefiro não ficar falando no assunto. Eu — e creio que também a grande maioria dos munícipes — não espero dela nada em particular; para mim basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando.
O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos), peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina.
A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela. Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que saísse do caminho.
Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e beber.
Muita gente se amontoou na porta mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada.
A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem para que servia. E claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro.
As crianças, que não são de respeitar mistério, como você sabe, trataram de aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem iam pedir?), retiraram a lona e foram subindo em bando pela máquina acima — até hoje ainda sobem, brincam de esconder entre os cilindros e colunas, embaraçam-se nos dentes das engrenagens e fazem um berreiro dos diabos até que apareça alguém para soltá-las; não adiantam ralhos, castigos, pancadas; as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.
Contrariando a opinião de certas pessoas que não quiseram se entusiasmar, e garantiram que em poucos dias a novidade passaria e a ferrugem tomaria conta do metal, o interesse do povo ainda não diminuiu. Ninguém passa pelo largo sem ainda parar diante da máquina, e de cada vez há um detalhe novo a notar.
Até as velhinhas de igreja, que passam de madrugada e de noitinha, tossindo e rezando, viram o rosto para o lado da máquina e fazem uma curvatura discreta, só faltam se benzer. Homens abrutalhados, como aquele Clodoaldo seu conhecido, que se exibe derrubando boi pelos chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito; se um ou outro agarra uma alavanca e sacode com força, ou larga um pontapé numa das colunas, vê-se logo que são bravatas feitas por honra da firma, para manter fama de corajoso.
Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela máquina.
Devemos reconhecer — aliás todos reconhecem — que esse funcionário tem dado boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes também de noite, podemos vê-lo trepado lá por cima espanando cada vão, cada engrenagem, desaparecendo aqui para reaparecer ali, assoviando ou cantando, ativo e incansável. Duas vezes por semana ele aplica kaol [marca de produto utilizado para polir metais] nas partes de metal dourado, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo — e a máquina fica faiscando como joia.
Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no largo, que se um dia ela desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse buscá-la, provando com documentos que tinha direito, eu nem sei o que aconteceria, nem quero pensar.
Ela é o nosso orgulho, e não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância. Fique sabendo que temos recebido delegações de outras cidades, do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem comprá-la. Chegam como quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade, rodeiam, negaceiam, abrem o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o prefeito é de confiança e é esperto, não cai na conversa macia.
Em todas as datas cívicas a máquina é agora uma parte importante das festividades. Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina. Em tempo de eleição todos os candidatos querem fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é possível, alguém tem de sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos. Felizmente a máquina ainda não foi danificada nesses esparramos, e espero que não seja.
A única pessoa que ainda não rendeu homenagem à máquina é o vigário, mas você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda, com a idade. Em todo caso, ainda não tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando; é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas ninguém se impressionou.
Até agora o único acidente de certa gravidade que tivemos foi quando um caixeiro da loja do velho Adudes (aquele velhinho espigado que passa brilhantina no bigode, se lembra?) prendeu a perna numa engrenagem da máquina, isso por culpa dele mesmo. O rapaz andou bebendo em uma serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em cima da máquina. Não se sabe como, ele subiu à plataforma mais alta, de madrugada rolou de lá, caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as rodas. Os gritos acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi preciso arranjar uns barrotes e labancas [ferramenta usada para furar o chão] para desandar as rodas que estavam mordendo a perna do rapaz. Também dessa vez a máquina nada sofreu, felizmente. Sem a perna e sem o emprego, o imprudente rapaz ajuda na conservação da máquina, cuidando das partes mais baixas.
Já existe aqui um movimento para declarar a máquina monumento municipal — por enquanto. O vigário, como sempre, está contra; quer sabe a que seria dedicado o monumento. Você já viu que homem mais azedo?
Dizem que a máquina já tem feito até milagre, mas isso — aqui para nós — eu acho que é exagero de gente supersticiosa, e prefiro não ficar falando no assunto. Eu — e creio que também a grande maioria dos munícipes — não espero dela nada em particular; para mim basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando.
O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos), peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina.
José J. Veiga
sábado, novembro 23
O mau samaritano
Quantas vezes tenho passado perto de um doente,
Perto de um louco, de um triste, de um miserável,
Sem lhes dar uma palavra de consolo.
Eu bem sei que minha vida é ligada à dos outros,
Que outros precisam de mim que preciso de Deus
Quantas criaturas terão esperado de mim
Apenas um olhar – que eu recusei.
Murilo Mendes, "A poesia em pânico"
16 de junho
Decido escrever um romance. Personagens: a Grande Escritora de Grandes Olhos Pardos, mulher farpada e apaixonada. O fotógrafo feio e fino que me vê pronta e prosa de lápis comprido inventando a ilha perdida do prazer. O livrinho que sumiu atrás da estante que morava na parede do quarto que cabia no labirinto cego que o coelho pensante conhecia e conhecia e conhecia. Nessa altura eu tinha um quarto só para mim com janela de correr narcisos e era atacada de noite pela fome tenra que papai me deu.
Ana Cristina Cesar, "Cenas de Abril"
A Marcha da Utopia
Os terráqueos sempre sonharam com a Lua. Conta-se que seu planetinha, batizado de Terra por falta de nome melhor, era de todo uma graça, mas os habitantes viviam com a mente no alto, os olhos vidrados no astro celeste vizinho, desejando um dia chegar lá. Em sua ânsia e determinação, não passava dia em que não lançassem seus melhores arpões em direção à Lua, na esperança de que algum deles se prendesse e lhes permitisse, afinal, ascender. E assim os séculos passavam.
Cada tentativa frustrada os impelia com maior obstinação. Subiam em prédios e torres, morros e montanhas, galgavam os pontos mais altos que podiam encontrar e, a partir deles, valiam-se dos equipamentos mais modernos e potentes para projetar cordas e escadas à Lua. Conta-se que a Babilônia, sua maior metrópole, encimava a região mais elevada do planeta, e que a mera proximidade com a Lua enobrecia seus habitantes, inspirando-lhes virtudes e talentos.Sempre em vão. Com o progresso constante de suas tecnologias, porém, mantinham o sentimento de que apenas alguns poucos entraves os separavam do triunfo.
Como o projeto lunar jamais abandonava suas mentes, foi apenas lógico que construíssem suas principais cidades nos pontos mais altos da Terra. Conta-se que a Babilônia, sua maior metrópole, encimava a região mais elevada do planeta, e que a mera proximidade com a Lua enobrecia seus habitantes, inspirando-lhes virtudes e talentos. Ali estudaram os maiores gênios e sábios entre os terráqueos. Não por acaso, foram estes intelectuais babilônicos que idealizaram a construção da afamada Torre Lunar — a empreitada lunar mais ousada até então.
O Rei Nabipolassar, último regente da Babilônia, nutria grande reverência pela instrução dos sábios. Por esta razão, revelou-se um dos maiores entusiastas do projeto da Torre Lunar, não poupando esforços para concretizá-lo. Foram quase vinte anos de intenso sacrifício, de trabalho árduo, de cansaço e fome; como consequência, muitos dos babilônios, em especial os menos esclarecidos, como os plebeus ou mesmo os pedreiros da Torre, não conseguiam enxergar para além de seus interesses imediatos, pelo que com frequência houve insatisfação, discordância, protestos e revoltas. Foram quase vinte anos de intenso sacrifício, de trabalho árduo, de cansaço e fome.Competiu ao Rei impor ordem e disciplina a seu povo, guiando-o para o progresso antecipado pelos eruditos. Assim, apesar de várias dissidências e tantos empecilhos, a construção foi finalizada.
Com a inauguração do novo ponto mais próximo à Lua, houve grande entusiasmo, e profissionais de alçagem de toda o planeta visitaram a Torre para lançar seus arpões. O próprio Rei Nabipolassar se fazia presente nas principais tentativas, com cobertura televisiva internacional. Com o passar das semanas, entretanto, ficou evidente que a altura da Torre Lunar ainda era insuficiente. Haviam falhado.
Mas, naturalmente, os terráqueos não se abateriam tão facilmente.
Cada tentativa frustrada os impelia com maior obstinação. Subiam em prédios e torres, morros e montanhas, galgavam os pontos mais altos que podiam encontrar e, a partir deles, valiam-se dos equipamentos mais modernos e potentes para projetar cordas e escadas à Lua. Conta-se que a Babilônia, sua maior metrópole, encimava a região mais elevada do planeta, e que a mera proximidade com a Lua enobrecia seus habitantes, inspirando-lhes virtudes e talentos.Sempre em vão. Com o progresso constante de suas tecnologias, porém, mantinham o sentimento de que apenas alguns poucos entraves os separavam do triunfo.
Como o projeto lunar jamais abandonava suas mentes, foi apenas lógico que construíssem suas principais cidades nos pontos mais altos da Terra. Conta-se que a Babilônia, sua maior metrópole, encimava a região mais elevada do planeta, e que a mera proximidade com a Lua enobrecia seus habitantes, inspirando-lhes virtudes e talentos. Ali estudaram os maiores gênios e sábios entre os terráqueos. Não por acaso, foram estes intelectuais babilônicos que idealizaram a construção da afamada Torre Lunar — a empreitada lunar mais ousada até então.
O Rei Nabipolassar, último regente da Babilônia, nutria grande reverência pela instrução dos sábios. Por esta razão, revelou-se um dos maiores entusiastas do projeto da Torre Lunar, não poupando esforços para concretizá-lo. Foram quase vinte anos de intenso sacrifício, de trabalho árduo, de cansaço e fome; como consequência, muitos dos babilônios, em especial os menos esclarecidos, como os plebeus ou mesmo os pedreiros da Torre, não conseguiam enxergar para além de seus interesses imediatos, pelo que com frequência houve insatisfação, discordância, protestos e revoltas. Foram quase vinte anos de intenso sacrifício, de trabalho árduo, de cansaço e fome.Competiu ao Rei impor ordem e disciplina a seu povo, guiando-o para o progresso antecipado pelos eruditos. Assim, apesar de várias dissidências e tantos empecilhos, a construção foi finalizada.
Com a inauguração do novo ponto mais próximo à Lua, houve grande entusiasmo, e profissionais de alçagem de toda o planeta visitaram a Torre para lançar seus arpões. O próprio Rei Nabipolassar se fazia presente nas principais tentativas, com cobertura televisiva internacional. Com o passar das semanas, entretanto, ficou evidente que a altura da Torre Lunar ainda era insuficiente. Haviam falhado.
Mas, naturalmente, os terráqueos não se abateriam tão facilmente.
Rebatizada de Torre Lunar I, esta grande empreitada civilizacional foi apenas a primeira de uma série de projetos cada vez mais ousados. Para os terráqueos, o desejo de tocar a Lua era algo instintivo, intricado em sua própria natureza, e estava claro, desde a aurora dos tempos, que o destino manifesto da espécie era concretizar tal proeza. "O futuro é lunar", dizia-se. Mesmo no passado remoto da Terra, as religiões retratavam a Lua como a destinação gloriosa da alma dos virtuosos após sua morte. Outras crenças defendiam que os espíritos de todos os "É algo que ninguém quer ouvir, eu sei. Mas é impossível! E não só é impossível, mas sequer é desejável! Nossa natureza é incompatível com tais condições."terráqueos habitaram o plano lunar nos primeiros dias do universo e que, devido a seus pecados, haviam sido expulsos; a eles restaria, porém, a chance de retornar àquele paraíso no Juízo Final. As venturas do progresso, contudo, inspiraram os terráqueos a buscar resultados mais imediatos para seus anseios. Com os engenhos da ciência, não seria mais necessário depender da benevolência divina; o paraíso poderia — e deveria — ser alcançado em vida, e não pelas almas, mas pela civilização.
Sabe-se, entretanto, que nem todos os sábios apoiaram o grande projeto.
— É absolutamente impossível — dizia Nicopeu, o Velho — alcançar a Lua por meio de cordas, escadas e torres. É algo que ninguém quer ouvir, eu sei. Mas é impossível! E não só é impossível, mas sequer é desejável! No alto, não há ar. Morreríamos sufocados! De noite, não há calor. Congelaríamos! De dia, o toque dos raios do Sol nos queimaria como relâmpagos! Nossa natureza é incompatível com tais condições. E não fosse tudo isso... que há de se fazer na Lua? Observamos que nada existe lá em cima, senão pó! Nada nasce ou perdura em solo lunar. É um local sem vida. Com equipamentos, quem sabe... Quem sabe poderíamos até sobreviver por algumas horas, mesmo dias... mas é isso que queremos? Pesando todos os sacrifícios, valerá a pena?
Nunca antes um dos sábios havia se manifestado daquela forma. É verdade que muitos dos plebeus, com seu pouco entendimento, eram afeitos a ideias retrógradas, e a um medo cego do progresso; mas era incompreensível como tais ignorâncias poderiam brotar da boca de um estudioso da mais alta reputação.
Em resposta àquela declaração, houve grande alvoroço em toda a Terra. Nicopeu foi afastado de sua universidade, duramente criticado pelo Rei, e tornou-se, da noite para o dia, a pessoa mais odiada entre os terráqueos. E, no entanto, foi ovacionado pelas massas de revoltosos — os descontentes com o projeto lunar. Com o apoio que recebeu, e apesar dos ataques, o sábio fundou sua própria academia de estudos, e eruditos dissidentes de várias partes do mundo juntaram-se a ele. Foram conhecidos como os malditos de Nicopeu. Eram excluídos de todos os principais círculos da sociedade, considerados inimigos do progresso — gente ignorante, alienada e vil.
— Se não fosse a constante sabotagem de Nicopeu e seus fanáticos, já estaríamos na Lua agora — dizia-se. — Precisamos tomar providências.
Durante os anos seguintes, os mais talentosos sábios a serviço do Rei trabalharam para elaborar um novo paradigma de sociedade otimizado para o projeto lunar. Todos os recursos econômicos foram mobilizados. Toda a força produtiva foi alinhada. Novas torres, sempre mais altas, eram construídas. Os esforços foram dobrados, triplicados; as horas de trabalho iam aumentando, as de sono diminuindo. Centenas de operários morreram de exaustão, outros de fome; os que se recusavam a cooperar eram reeducados ou, nos piores casos, executados.
Pouco antes de seu misterioso assassinato, Nicopeu foi a público manifestar-se sobre a construção da Torre Lunar VI, apelidada com o nome de seu projetista, Babel:
— Estamos à beira do colapso. Outra Torre será a ruina de todos nós. Se é imperativo que se pise na Lua, então que seja. Mas é forçoso que o façamos de uma maneira que funcione. Torres, cordas e escadas jamais funcionarão! Por isso, desenvolvi uma tecnologia apropriada para esse tipo de tarefa: o foguete. Com menos de um centésimo do valor gasto na manutenção de uma das Torres, é possível levar um viajante à Lua. Os foguetes são veículos muito eficientes. Mesmo assim, apenas algumas poucas pessoas poderão pisar na Lua de cada vez. Para estar preparado para uma viagem dessas, e para saber utilizar os equipamentos, uma pessoa deverá dedicar anos, ou mesmo décadas, estudando e treinando. Deverá empenhar grande esforço, e demonstrar notável competência. Mesmo assim, reitero: ninguém pode viver na Lua. O viajante lunar poderá ficar lá apenas algumas horas, no máximo alguns dias. Essa é a única maneira.
Motivo de risada para uns, e de ultraje para outros, a fala de Nicopeu foi de todo rejeitada pelas autoridades e pelos intelectuais terráqueos. Ficou claro que o velho havia enlouquecido, e em meio às insânias que propunha, transparecia sua inveja pelas conquistas dos projetistas, bem como sua cobiça pelos investimentos bilionários nas Torres. Sua proposta parecia nada mais do que um ardil para embolsar o dinheiro suado dos plebeus, concedendo apenas aos privilegiados — ricos e meritocratas — o acesso ao solo lunar.
— Então é isso que o velho louco sugere — disse o Rei Nabipolassar, perplexo —: que sentemos em um gigantesco rojão aceso!
Aquela, certamente, não era a solução que os terráqueos procuravam. E após várias semanas de comemoração à misteriosa morte de Nicopeu, foram iniciados os trabalhos na Torre Lunar VI. Para reviver os ânimos do povo e reforçar a importância do projeto, o Rei preparou um discurso motivacional, com ajuda de sábios e escrivães:
— Tempos atrás, afirmava-se ser impossível construir um prédio de mais de seis andares. Séculos se passaram, e mais uma vez os engenheiros estavam convencidos de que uma torre jamais chegaria aos 500 metros. Hoje, já ultrapassamos a marca de um quilômetro! É óbvio que, para alcançar a Lua, a maneira segura é construir prédios mais altos, e ainda mais altos. O que é impossível hoje, amanhã não mais o será. Um dia, sem dúvida, chegaremos lá. Essa, aliás, é a grande beleza da utopia: mesmo que jamais chegássemos à Lua subindo em coisas altas, nós poderíamos ter certeza de que, se pelo menos continuássemos tentando, de novo e de novo, estaríamos a cada dia mais próximos do nosso ideal. Portanto, não desesperemos! A estrada é dura. Nosso caminho é pavimentado com suor e sangue. É assim mesmo. Uns sofrem mais, outros menos. Uns carregam tijolos, outros ideias. O que pesa mais? Não podemos esmorecer, nem ser presa do cinismo destrutivo dos sabotadores, que nos odeiam pelos nossos sonhos, e porque não temos medo de dar tudo para alcançá-los. Haverá fome, medo, desespero. Haverá doença, praga e crime. Mas quando a incerteza bater à porta, olhe para cima, olhe para o astro que nos guia: essa beleza a tudo justifica. E se tudo der certo, a Torre VI, esta nossa Torre de Babel, será a última que precisaremos levantar. Com ela, encontraremos nosso destino.
Sabe-se, entretanto, que nem todos os sábios apoiaram o grande projeto.
— É absolutamente impossível — dizia Nicopeu, o Velho — alcançar a Lua por meio de cordas, escadas e torres. É algo que ninguém quer ouvir, eu sei. Mas é impossível! E não só é impossível, mas sequer é desejável! No alto, não há ar. Morreríamos sufocados! De noite, não há calor. Congelaríamos! De dia, o toque dos raios do Sol nos queimaria como relâmpagos! Nossa natureza é incompatível com tais condições. E não fosse tudo isso... que há de se fazer na Lua? Observamos que nada existe lá em cima, senão pó! Nada nasce ou perdura em solo lunar. É um local sem vida. Com equipamentos, quem sabe... Quem sabe poderíamos até sobreviver por algumas horas, mesmo dias... mas é isso que queremos? Pesando todos os sacrifícios, valerá a pena?
Nunca antes um dos sábios havia se manifestado daquela forma. É verdade que muitos dos plebeus, com seu pouco entendimento, eram afeitos a ideias retrógradas, e a um medo cego do progresso; mas era incompreensível como tais ignorâncias poderiam brotar da boca de um estudioso da mais alta reputação.
Em resposta àquela declaração, houve grande alvoroço em toda a Terra. Nicopeu foi afastado de sua universidade, duramente criticado pelo Rei, e tornou-se, da noite para o dia, a pessoa mais odiada entre os terráqueos. E, no entanto, foi ovacionado pelas massas de revoltosos — os descontentes com o projeto lunar. Com o apoio que recebeu, e apesar dos ataques, o sábio fundou sua própria academia de estudos, e eruditos dissidentes de várias partes do mundo juntaram-se a ele. Foram conhecidos como os malditos de Nicopeu. Eram excluídos de todos os principais círculos da sociedade, considerados inimigos do progresso — gente ignorante, alienada e vil.
— Se não fosse a constante sabotagem de Nicopeu e seus fanáticos, já estaríamos na Lua agora — dizia-se. — Precisamos tomar providências.
Durante os anos seguintes, os mais talentosos sábios a serviço do Rei trabalharam para elaborar um novo paradigma de sociedade otimizado para o projeto lunar. Todos os recursos econômicos foram mobilizados. Toda a força produtiva foi alinhada. Novas torres, sempre mais altas, eram construídas. Os esforços foram dobrados, triplicados; as horas de trabalho iam aumentando, as de sono diminuindo. Centenas de operários morreram de exaustão, outros de fome; os que se recusavam a cooperar eram reeducados ou, nos piores casos, executados.
Pouco antes de seu misterioso assassinato, Nicopeu foi a público manifestar-se sobre a construção da Torre Lunar VI, apelidada com o nome de seu projetista, Babel:
— Estamos à beira do colapso. Outra Torre será a ruina de todos nós. Se é imperativo que se pise na Lua, então que seja. Mas é forçoso que o façamos de uma maneira que funcione. Torres, cordas e escadas jamais funcionarão! Por isso, desenvolvi uma tecnologia apropriada para esse tipo de tarefa: o foguete. Com menos de um centésimo do valor gasto na manutenção de uma das Torres, é possível levar um viajante à Lua. Os foguetes são veículos muito eficientes. Mesmo assim, apenas algumas poucas pessoas poderão pisar na Lua de cada vez. Para estar preparado para uma viagem dessas, e para saber utilizar os equipamentos, uma pessoa deverá dedicar anos, ou mesmo décadas, estudando e treinando. Deverá empenhar grande esforço, e demonstrar notável competência. Mesmo assim, reitero: ninguém pode viver na Lua. O viajante lunar poderá ficar lá apenas algumas horas, no máximo alguns dias. Essa é a única maneira.
Motivo de risada para uns, e de ultraje para outros, a fala de Nicopeu foi de todo rejeitada pelas autoridades e pelos intelectuais terráqueos. Ficou claro que o velho havia enlouquecido, e em meio às insânias que propunha, transparecia sua inveja pelas conquistas dos projetistas, bem como sua cobiça pelos investimentos bilionários nas Torres. Sua proposta parecia nada mais do que um ardil para embolsar o dinheiro suado dos plebeus, concedendo apenas aos privilegiados — ricos e meritocratas — o acesso ao solo lunar.
— Então é isso que o velho louco sugere — disse o Rei Nabipolassar, perplexo —: que sentemos em um gigantesco rojão aceso!
Aquela, certamente, não era a solução que os terráqueos procuravam. E após várias semanas de comemoração à misteriosa morte de Nicopeu, foram iniciados os trabalhos na Torre Lunar VI. Para reviver os ânimos do povo e reforçar a importância do projeto, o Rei preparou um discurso motivacional, com ajuda de sábios e escrivães:
— Tempos atrás, afirmava-se ser impossível construir um prédio de mais de seis andares. Séculos se passaram, e mais uma vez os engenheiros estavam convencidos de que uma torre jamais chegaria aos 500 metros. Hoje, já ultrapassamos a marca de um quilômetro! É óbvio que, para alcançar a Lua, a maneira segura é construir prédios mais altos, e ainda mais altos. O que é impossível hoje, amanhã não mais o será. Um dia, sem dúvida, chegaremos lá. Essa, aliás, é a grande beleza da utopia: mesmo que jamais chegássemos à Lua subindo em coisas altas, nós poderíamos ter certeza de que, se pelo menos continuássemos tentando, de novo e de novo, estaríamos a cada dia mais próximos do nosso ideal. Portanto, não desesperemos! A estrada é dura. Nosso caminho é pavimentado com suor e sangue. É assim mesmo. Uns sofrem mais, outros menos. Uns carregam tijolos, outros ideias. O que pesa mais? Não podemos esmorecer, nem ser presa do cinismo destrutivo dos sabotadores, que nos odeiam pelos nossos sonhos, e porque não temos medo de dar tudo para alcançá-los. Haverá fome, medo, desespero. Haverá doença, praga e crime. Mas quando a incerteza bater à porta, olhe para cima, olhe para o astro que nos guia: essa beleza a tudo justifica. E se tudo der certo, a Torre VI, esta nossa Torre de Babel, será a última que precisaremos levantar. Com ela, encontraremos nosso destino.
Eric Robin
A partida
Hoje, revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante. Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de mágoa ou desespero em minha impaciência. Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido. Sim, também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável, quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu não pudesse despir.
Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa.
Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria desafogar-me: passeios, domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens que me aguardavam. Que as horas voassem, voassem!
Percebi que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável ela fizesse isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma ternura que incomodava. Tive raiva do que me parecia um capricho e, como represália, fui para a cama.
Deixei a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto, em olhar para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me afetasse e irritava-me por começar a entender que não conseguiria afastar-me delas sem emoção.
Minha avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu hábito de fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais nítida com os poucos ruídos aos quais me fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento fechar de gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de talheres, de xícaras.
Por fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se:
— Acordado?
Apanhou o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a visito); mas pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei-lhe as costas.
Não consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se esvaíam, indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos, barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente, desagradável — imagens de febre.
Sentei-me na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma alegria dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas passavam, cantavam grilos, minha avó tossia e voltava-se no leito, as molas duras rangiam ao peso de seu corpo. A tosse passou, emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me.
Passava de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se. Abriu de leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando e ficou de pé junto a mim. Com que finalidade? — perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me conselhos? Ouvi-a então soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. Ela estava olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver — pensei. Mas eu não me parecia em nada com um morto, senão no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto.
Afinal, ela beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as mãos nas grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci.
Acordei pela madrugada. A princípio com tranquilidade, e logo com obstinação, quis novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo: passava das três. Restavam-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco. Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais naquela casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de disciplina e de amor.
Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes, penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um instante à beira da cama. Minha avó continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas palavras... Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus?
Ela estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe no ombro, ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não era preciso, eu tomaria um café na estação. Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito. Tentava sorrir.
Não sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa, cabisbaixo, à procura de objetos imaginários enquanto ela me seguia, abrigada em sua coberta. Eu sabia que desejava beijar-me, prender-se a mim, e à simples ideia desses gestos, estremeci. Como seria se, na hora do adeus, ela chorasse?
Enfim, beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe surpreendi um gesto de aproximação, decerto na esperança de um abraço final. Esquivei-me, apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para dois, com a humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que só se usava em nossos aniversários.
Osman Lins, "Os gestos"
Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa.
Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria desafogar-me: passeios, domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens que me aguardavam. Que as horas voassem, voassem!
Percebi que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável ela fizesse isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma ternura que incomodava. Tive raiva do que me parecia um capricho e, como represália, fui para a cama.
Deixei a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto, em olhar para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me afetasse e irritava-me por começar a entender que não conseguiria afastar-me delas sem emoção.
Minha avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu hábito de fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais nítida com os poucos ruídos aos quais me fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento fechar de gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de talheres, de xícaras.
Por fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se:
— Acordado?
Apanhou o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a visito); mas pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei-lhe as costas.
Não consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se esvaíam, indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos, barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente, desagradável — imagens de febre.
Sentei-me na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma alegria dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas passavam, cantavam grilos, minha avó tossia e voltava-se no leito, as molas duras rangiam ao peso de seu corpo. A tosse passou, emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me.
Passava de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se. Abriu de leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando e ficou de pé junto a mim. Com que finalidade? — perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me conselhos? Ouvi-a então soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. Ela estava olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver — pensei. Mas eu não me parecia em nada com um morto, senão no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto.
Afinal, ela beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as mãos nas grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci.
Acordei pela madrugada. A princípio com tranquilidade, e logo com obstinação, quis novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo: passava das três. Restavam-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco. Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais naquela casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de disciplina e de amor.
Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes, penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um instante à beira da cama. Minha avó continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas palavras... Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus?
Ela estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe no ombro, ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não era preciso, eu tomaria um café na estação. Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito. Tentava sorrir.
Não sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa, cabisbaixo, à procura de objetos imaginários enquanto ela me seguia, abrigada em sua coberta. Eu sabia que desejava beijar-me, prender-se a mim, e à simples ideia desses gestos, estremeci. Como seria se, na hora do adeus, ela chorasse?
Enfim, beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe surpreendi um gesto de aproximação, decerto na esperança de um abraço final. Esquivei-me, apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para dois, com a humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que só se usava em nossos aniversários.
Osman Lins, "Os gestos"
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