— Quem não viu essas tormentas — diz — não poderá fazer uma idéia da violência com que se desenvolvem. Durante horas inteiras os relâmpagos se sucedem rapidamente à maneira de cascatas de sangue e a atmosfera treme sob a agitação contínua dos trovões, cujos estampidos repercutem na imensidão da montanha.
A descrição está longe de ser uma obra-prima, mas bastaria para estremecer de horror o europeu menos crédulo.
Portanto, seria necessário criar todo um sistema de palavras novas para o tamanho de nossa realidade. Os exemplos dessa necessidade são intermináveis. F.W. Up de Graff, um explorador holandês que percorreu o alto Amazonas no início do século XX, disse que encontrou um arroio de água fervente onde se faziam ovos cozidos em cinco minutos, e passara por uma região onde não se podia falar em voz alta porque se desatavam aguaceiros torrenciais. Em algum lugar da costa caribenha da Colômbia vi um homem fazer uma oração na frente de uma vaca que tinha vermes na orelha, e vi cair os vermes mortos enquanto transcorria a oração. Aquele homem garantia que podia conseguir a mesma cura a distância se lhe fizessem a descrição do animal e indicassem o lugar em que se encontrava. Em 8 de maio de 1902, o vulcão Mont Pele, na ilha de Martinica, destruiu em poucos minutos o porto de Saint-Pierre e matou e sepultou em lava a totalidade de seus trinta mil habitantes. Menos um: Ludger Sylvaris, o único preso da população, protegido pela estrutura invulnerável da cela individual que construíram para que ele não pudesse escapar.
Seriam necessários vários volumes para expressar a realidade incrível do México. Depois de estar aqui quase vinte anos, poderia passar ainda horas inteiras, como fiz tantas vezes, contemplando uma vasilha de feijões dançarinos. Nacionalistas benevolentes me explicam que sua mobilidade se deve a uma lã viva que têm por dentro, mas a explicação parece pobre: o maravilhoso não é que os feijões se movimentem porque têm uma lã dentro, e sim que tenham uma lã dentro para que possam se mover. Outras das estranhas experiências de minha vida foi meu encontro com o axolotle. Julio Cortázar conta em um de seus relatos que conheceu o axolotl no Jardin des Plantes, em Paris, num dia em que queria ver leões. Ao circular diante dos aquários, conta Cortázar, “passei por cima os peixes vulgares até dar com o axolotle.” E conclui: “Fiquei olhando-o por uma hora, e saí, incapaz de outra coisa.” Ocorreu-me a mesma coisa, em Pátzcuaro, só que não o contemplei por uma hora, e sim uma tarde inteira, e voltei várias vezes. Mas havia algo ali que me impressionou mais do que o animal em si, e era a placa pendurada na porta da casa: “Vende-se xarope de axolotle.”
Essa realidade incrível alcança sua densidade máxima no Caribe, que, a rigor, estende-se (pelo norte) até o sul dos Estados Unidos, e, pelo sul, até o Brasil. Não se imagine que é um delírio expansionista. Não: o Caribe não é apenas uma área geográfica, como certamente crêem os geógrafos, mas uma área cultural muito homogênea.
No Caribe, aos elementos originais das crenças primárias e concepções mágicas anteriores ao descobrimento, somou-se a abundante variedade de culturas que confluíram nos anos seguintes num sincretismo mágico cujo interesse artístico e cuja própria fecundidade artística são inesgotáveis. A contribuição africana foi forçada e ultrajante, mas afortunada. Nessa encruzilhada do mundo, forjou-se um sentido de liberdade incomparável, uma realidade sem lei nem rei, onde cada um sentiu que era possível o que quisesse sem limites de qualquer espécie: e os bandoleiros amanheciam convertidos em reis, os fugitivos em almirantes, as prostitutas em governadoras. E também o contrário.
Nasci e cresci no Caribe. Conheço-o país a país, ilha a ilha, e talvez daí provenha minha frustração de que nunca me aconteceu nada nem pude fazer algo que seja mais assombroso do que a realidade. O mais longe a que pude chegar foi a transposição com recursos poéticos, mas não há uma só linha em nenhum de meus livros que não tenha sua origem num fato real. Uma dessas transposições é o estigma do rabo de porco que tanto inquietava a estirpe dos Buendía em Cem anos de solidão. Poderia recorrer a outra imagem qualquer, mas pensei que o temor do nascimento de um filho com rabo de porco era o que menos probabilidade tinha de coincidir com a realidade. Logo que o romance começou a ser conhecido, surgiram em diferentes lugares das Américas confissões de homens e mulheres que tinham algo semelhante a um rabo de porco. Em Barranquilla, um jovem se apresentou aos jornais: nascera e crescera com aquele rabo, mas não revelara a ninguém, até que leu Cem anos de solidão. Sua explicação era mais assombrosa do que seu rabo:
— Nunca disse que o tinha porque me dava vergonha, mas agora, lendo o romance e ouvindo as pessoas que o leram, dei-me conta de que é uma coisa natural.
Pouco depois, um leitor me mandou o recorte da foto de uma menina de Seul, capital da Coréia do Sul, que nasceu com um rabo de porco. Ao contrário do que eu pensava quando escrevi o romance, cortaram o rabo da menina de Seul e ela sobreviveu.
Minha experiência de escritor mais difícil foi a preparação de O outono do patriarca. Durante quase dez anos li tudo o que pude sobre os ditadores da América Latina, e em especial do Caribe, para que o livro que pensava escrever se parecesse o menos possível com a realidade. Cada momento era uma desilusão. A intuição de Juan Vicente Gómez era mais penetrante do que uma verdadeira faculdade divinatória. O doutor Duvalier, no Haiti, mandou exterminar os cães pretos no país, porque um de seus inimigos, tentando escapar da perseguição do tirano, despira-se de sua condição humana e se transformara em cão preto. O doutor Francia, cujo prestígio de filósofo era tão extenso que mereceu um estudo de Carlyle, fechou a República do Paraguai como se fosse uma casa, e só deixou aberta uma janela para que entrasse a correspondência. Antonio López de Santa Anna enterrou sua própria perna em funeral esplêndido. A mão cortada de Lope de Aguirre flutuou rio abaixo durante vários dias, e os que a viam passar estremeciam de horror, pensando que mesmo naquele estado a mão assassina podia erguer um punhal. Anastasio Somoza García, na Nicarágua, tinha no pátio de sua casa um jardim zoológico com jaulas de dois compartimentos: num deles estavam as feras e no outro, separado apenas por uma grade de ferro, encerrados seus inimigos políticos.
Martínez, o ditador teosofista de El Salvador, mandou forrar com papel vermelho toda a iluminação pública do país, para combater uma epidemia de sarampo, e inventara um pêndulo que colocava sobre os alimentos antes de comer, para verificar se estavam envenenados. A estátua de Morazán que ainda existe em Tegucigalpa é em realidade do marechal Ney: a comissão oficial que viajou a Londres para buscá-la resolveu que era mais barato comprar esta estátua esquecida num depósito do que mandar fazer uma autêntica de Morazán.
Em síntese, nós, escritores da América Latina e do Caribe, temos de reconhecer, com a mão no coração, que a realidade escreve melhor. Nosso destino, e talvez nossa glória, é tentar imitá-la com humildade, e da melhor maneira possível.
Gabriel García Márquez, “Crônicas – obra jornalística: 1961-1984”

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