terça-feira, novembro 25

Ondas escrevem estórias

A paisagem chegara ao mar. A estrada, agora, só se tapeteia de areia branca. À medida que a viagem prossegue, Tuahir vai piorando, como se se aproximasse dos derradeiros finais. Ele se esbate no banco do autocarro, tão inerte quanto Muidinga estava em sua doença.

— Se depois desta doença eu não souber andar nem falar você me ensina outra vez?

O miúdo não responde. Vai arrastando o banco de Tuahir pela areia até assentar no cimo da duna. Ali os arbustos sombreiam o leito do companheiro.

— Vê aquele barco velho, ali abandonado?

— Vejo, tio.

— Me faça como Surendra fez com mulher dele. Meta-me nesse barco.

— Não, tio. O senhor fica comigo. Eu vou lhe cuidar.

— Me deite no barco, filho. Quero morrer sem ver nenhuma terra, só água em todo lado.

Muidinga se aproxima do concho. No peito da pequena embarcação pequenas letras se desbotam. O nome do barco quase já não é legível.

— Como se chama o concho?

— Nem vai acreditar, tio.

— Porquê?

— Porque se chama Taímo. Lembra? É o mesmo nome da canoa de Kindzu.

Tuahir permanece impávido, sem ligar à coincidência. Deve pensar que é invenção do miúdo para o distrair. De novo, protesta para que seja levado para a canoa. Por fim, Muidinga o arrasta e o deposita na barriga do barquito.

— Agora, tio. Descanse a ver o mar, faz bem à disposição. Daqui a bocadito, regressamos ao machimbombo. Está certo, tio?

— Não me leve mais para o machimbombo. De noite, está cheio dos ratos. Vou ser comido, da maneira que nem posso defender.

O velho tinha outro plano: ficariam esperando que a maré subisse. Quando a canoa estivesse dentro da água, seria fácil empurrá-la para o mar. O miúdo nem responde, seus olhos molhados se confrontam com os argumentos da morte.]

— Espere, tio. Vou-lhe ler.

— Quanto falta para acabar esses cadernos?

— Falta pouco: este é o último.

— Então não me lê. Guarda para você, quando estiver sozinho.

— Não, tio. Eu posso ler agora.

— Então, espera. Não leia já. Mais tarde quando estiver a água a subir.

As gaivotas rodopiam, com seus piares aflitos. O mar está sossegado nem parece que ali está a acontecer uma despedida.

— Muidinga, me diga uma coisa. Tudo aquilo que você leu nesses cadernos, tudo aquilo está escrito?

— Não entendo.

— Estou perguntar se você não aumentou algumas verdades ali naqueles cadernos.

— Mas, tio, é capaz pensar uma coisa dessas?

— Deixe. Agora me comece a ler.

As ondas vão subindo a duna e rodeiam a canoa. A voz do miúdo quase não se escuta, abafada pelo requebrar das vagas. Tuahir está deitado, olhando a água a chegar. Agora, já o barquinho balouça. Aos poucos se vai tornando leve como mulher ao sabor de carícia e se solta do colo da terra, já livre, navegável. Começa então a viagem de Tuahir para um mar cheio de infinitas fantasias. Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro mundo.
Mia Couto, "Terra Sonâmbula"

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