domingo, novembro 30

Fardo

Eles estavam discutindo havia quase três quartos de hora. Abafadas e ininteligíveis, as vozes flutuavam pelo corredor desde o extremo oposto do apartamento. Inclinada sobre sua costura, Sophie perguntou-se, sem muita curiosidade, o que seria dessa vez. Era a voz de Madame que ela ouvia com mais frequência. Aguda de raiva e indignada de lágrimas, ela explodia em rajadas, em jorros. Monsieur era mais controlado, e sua voz mais baixa era suave demais para atravessar com facilidade as portas fechadas e o corredor. Para Sophie, em seu quartinho frio, a briga parecia, na maior parte do tempo, uma série de monólogos de Madame, interrompidos por silêncios estranhos e pesados. Mas, de vez em quando, Monsieur parecia perder completamente a paciência e então não havia silêncio entre as rajadas, e sim um grito áspero, profundo, zangado. Madame mantinha o tom agudo e alto continuamente e sem esmorecer; sua voz tinha, mesmo na raiva, uma monotonia curiosa e regular. Mas Monsieur às vezes falava alto, às vezes baixo, com ênfases, modulações e explosões súbitas, de modo que suas contribuições à discussão, quando eram audíveis, soavam como uma série de explosões distintas. Uau, uau, uau-uau-uau, uau — um cachorro latindo estupidamente.

Depois de algum tempo Sophie não prestou mais atenção ao barulho da briga. Consertava uma das camisolas de Madame, e o trabalho requeria toda a sua atenção. Sentia-se muito cansada; seu corpo todo doía. Tinha sido um dia difícil; a véspera também, e o dia anterior à véspera também. Todos os dias eram dias difíceis, e ela não era mais tão jovem quanto antes. Mais dois anos e teria cinquenta. Todos os dias tinham sido difíceis desde que ela se lembrava. Pensou nos sacos de batatas que costumava carregar quando era menina, no campo. Devagar, devagar ela caminhava pela estrada poeirenta com o saco sobre o ombro. Mais dez passos; podia conseguir isso. Só que nunca era o fim; tinha-se sempre que começar de novo.

Ergueu os olhos da costura, moveu a cabeça de um lado para o outro, piscou. Começava a ver luzes e manchas de cor dançando diante dos olhos; agora isso lhe acontecia com frequência. Uma espécie de verme brilhante e amarelado contorcia-se em direção ao canto direito de seu campo de visão; e embora ele estivesse sempre em movimento para cima, para cima, estava sempre ali no mesmo lugar. E havia estrelas vermelhas e verdes que surgiam, brilhavam e sumiam em torno do verme. Eles se moviam entre ela e a costura; estavam lá quando ela fechava os olhos. Depois de um momento ela continuou o trabalho; Madame queria a camisola muito especialmente na manhã seguinte. Mas era difícil ver atrás do verme.

Houve um súbito aumento de barulho do outro lado do corredor. Uma porta foi aberta; as palavras se articulavam.

– … bien tort, mon ami, si tu crois que je suis ton esclave. Je ferai ce que je voudrai.

— Moi aussi. — Monsieur soltou uma risada áspera, perigosa. Houve o som de passos pesados no corredor, um ruído no porta-guarda-chuvas; então a porta da frente bateu.

Sophie tornou a baixar os olhos para o trabalho. Ah, o verme, as estrelas coloridas, a dolorosa fadiga em todos os seus membros! Se pudesse passar um dia inteiro na cama, uma cama imensa, macia, quente, o dia inteiro…

A campainha assustou-a. Sempre a deixava nervosa, aquele zumbido de vespa furiosa. Levantou-se, deixou o trabalho na mesa, alisou o avental, ajeitou a touca e saiu para o corredor. Mais uma vez a campainha soou furiosamente. Madame estava impaciente.

– Finalmente, Sophie. Pensei que você nunca viesse. Sophie não disse nada; não havia nada a dizer. Madame estava parada junto ao armário aberto. Uma porção de roupas estava pendurada em seu braço e havia mais roupas em um monte sobre a cama.

“Une beauté à la Rubens”, seu marido costumava chamá-la quando se mostrava mais carinhoso. Gostava dessas mulheres grandes, esplêndidas, imponentes. Nada desses canos flexíveis para ele. “Hélène Fourmont” era seu apelido para ela.

– Algum dia — Madame costumava dizer aos amigos — eu tenho que ir até o Louvre ver meu retrato. O feito por Rubens, sabe. É extraordinário uma pessoa morar a vida inteira em Paris e nunca ter ido ao Louvre. Você não acha?

Essa noite ela estava soberba. As faces estavam enrubescidas; os olhos azuis brilhavam com um fulgor incomum entre as longas pestanas; os cabelos curtos, castanho-avermelhados, estavam despenteados.

– Amanhã, Sophie, nós partiremos para Roma — ela anunciou dramaticamente. — Amanhã de manhã. — Enquanto falava tirou outro vestido do armário e jogou-o na cama. Com o movimento seu roupão abriu-se, e houve uma visão de roupas de baixo enfeitadas e de carne branca e exuberante. — Temos que fazer as malas imediatamente.

– Por quanto tempo, Madame?

– Quinze dias, três meses; como vou saber?

– Faz diferença, Madame.

– O importante é ir embora. Não vou voltar a esta casa, depois do que me foi dito hoje, até que me peçam humildemente.

– Então é melhor levarmos o baú grande, Madame; vou buscá-lo.

O ar no quarto de guardados estava insuportável, cheirava a poeira e couro. O baú grande estava enfiado num canto distante. Ela teve de inclinar-se e esforçar-se para poder puxá-lo para fora. O verme e as estrelas coloridas piscavam diante de seus olhos; sentiu-se tonta quando se endireitou.

– Vou ajudá-la, Sophie — disse Madame, quando a empregada voltou arrastando o baú pesado atrás de si. Que cara de morte essa mulher tinha ultimamente! Ela odiava ter pessoas velhas e feias perto de si. Mas Sophie era tão eficiente; seria loucura livrar-se dela.

– Madame não precisa se preocupar. — Isso não teria fim, Sophie sabia, se Madame começasse a abrir gavetas e jogar coisas. — É melhor Madame ir dormir. Já é tarde.

Não, não. Ela não conseguiria dormir. Estava enervada a tal ponto… Esses homens… Que animalidade! Ninguém era escravo deles. Ninguém queria ser tratado assim.

Sophie arrumava o baú. Um dia inteiro na cama, em uma cama grande e macia como a de Madame. Cochilar, acordar por um momento, cochilar novamente.

– O último jogo dele — Madame dizia com indignação — é me dizer que não tem dinheiro. Não posso comprar roupas, diz. Grotesco demais. Não posso andar nua por aí, posso? — Ergueu as mãos. — E, quanto a dizer que ele não pode pagar, isso é besteira pura. Pode, perfeitamente bem. Só que ele é mau, mau, horrivelmente mau. E se ao menos fizesse um trabalho honesto, para variar, em vez de escrever versos tolos e publicá-los por sua própria conta, teria muito dinheiro. — Caminhou de um lado para o outro no quarto. — Além disso há o pai dele — continuou. — Para que ele serve eu gostaria de saber. “Você deve se orgulhar de ter um marido poeta”, diz. — Ela fez a voz tremer como a de um velho. — Mal posso me conter para não rir na cara dele. “E que versos lindos Hégésippe escreve sobre você! Que paixão, que fogo!” — Pensando no velho, ela esboçou uma careta e fez a cabeça vacilar, o dedo tremer e as pernas capengarem. — E quando se pensa que o pobre Hégésippe é calvo e pinta os poucos cabelos que tem… — Ela riu. — Quanto à paixão de que ele tanto fala em seus detestáveis versos, é tudo pura invenção. Mas, minha boa Sophie, em que você está pensando? Por que está guardando esse vestido verde velho e horroroso?

Sophie tirou o vestido do baú sem dizer coisa alguma. Por que essa mulher foi escolher logo esta noite para parecer tão terrivelmente doente? Tinha o rosto amarelo e os dentes azuis. Madame estremeceu; era horrível demais. Devia mandá-la para a cama. Mas, afinal, o trabalho tinha de ser feito. Que é que se podia fazer? Ela se sentia mais que nunca melindrada.

– A vida é terrível. — Suspirando, sentou-se pesadamente na beirada da cama. As molas flexíveis sacudiram-na suavemente uma ou duas vezes. — Ser casada com um homem assim. Logo estarei ficando velha e gorda. E nem uma vez infiel. Mas veja como ele me trata. — Tornou a levantar-se e começou a caminhar sem rumo pelo quarto. — Não vou aguentar isso — explodiu.

Parou em frente ao espelho comprido e ficou admirando sua figura trágica e esplêndida. Ninguém acreditaria, olhando para ela, que tinha mais de trinta anos. Atrás da beleza trágica ela podia ver no espelho uma criatura velha, magra e infeliz, com rosto amarelo e dentes azuis, acocorada junto ao baú. Realmente, era desagradável demais. Sophie parecia uma dessas mendigas que se veem nas manhãs frias, paradas na sarjeta. A pessoa passa depressa, tentando não olhar para elas? Ou para, abre a bolsa e lhes dá uma moeda — até mesmo uma nota de dois francos, se não se tem trocado? Seja o que for que faça, a pessoa fica sempre desconfortável, sempre se sente como se desculpando por suas pelicas. Era isso que dava andar. Se a pessoa tivesse um carro — mas essa era outra das maldades de Hégésippe —, não teria, viajando atrás de janelas fechadas, que tomar consciência delas. Ela deu as costas ao espelho.

– Não vou aguentar — disse, tentando não pensar nas mendigas, em dentes azuis e rostos amarelos. — Não vou aguentar. — Deixou-se cair numa cadeira.

Mas pensar em um amante com rosto amarelo e dentes azuis e desiguais! Ela fechou os olhos, estremecendo ao pensar nisso. Seria o bastante para deixar a pessoa doente. Sentiu-se impelida a dar outra olhada: os olhos de Sophie tinham a cor de chumbo esverdeado, sem vida. Que é que se podia fazer? O rosto da mulher era uma repreensão, uma acusação. E, além disso, vê-la fazia-a sentir-se verdadeiramente doente. Nunca tinha ficado tão profundamente irritada.

Sophie ergueu-se lentamente e com dificuldade; uma expressão de dor cruzou seu rosto. Lentamente ela caminhou para a cômoda, lentamente contou seis pares de meias de seda. Tornou a virar-se para o baú. Essa mulher era um cadáver ambulante!

– A vida é terrível — Madame repetiu com convicção. — Terrível, terrível, terrível.

Devia mandar a mulher para a cama. Mas nunca conseguiria arrumar as coisas sozinha. E era tão importante ir embora na manhã seguinte. Ela tinha dito a Hégésippe que iria e ele simplesmente rira; não tinha acreditado. Desta vez tinha que lhe dar uma lição. Em Roma ela veria Luigino. Um rapaz tão encantador, e marquês, também. Talvez… Mas ela não conseguia pensar em coisa alguma além do rosto de Sophie; os olhos plúmbeos, os dentes azulados, a pele amarela e enrugada.

– Sophie — disse de repente; era com dificuldade que não gritava —, olhe em minha penteadeira. Vai ver uma caixa de ruge, o Dorin número 24. Coloque um pouco no rosto. E há um bastão de pomada para os lábios na gaveta da direita.

Manteve os olhos resolutamente afastados enquanto Sophie se levantava (com que horrível estalar das juntas!), caminhava até a penteadeira e ficava parada ali, ruidosa, durante o que parecia ser uma eternidade. Que vida, meu Deus, que vida! Passos lentos voltavam. Ela abriu os olhos. Ah, isso era melhor, muito melhor.

– Obrigada, Sophie. Você parece muito menos cansada agora. — Levantou-se vivamente. — E agora temos que nos apressar. — Cheia de energia, ela correu para o armário. — Meu Deus! — exclamou, levantando as mãos. — Você esqueceu de pegar meu vestido azul de noite. Como pode ser tão estúpida, Sophie?
Aldous Huxley

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