sábado, abril 11

A lacraia conversível ou o submundo da tradução

Ilustração: Marcelo Cipis
Toda tradução pode ser criticada. As palavras não são como os números. Um quatro vale tanto no Brasil como na China, hoje ou daqui a cem anos. As palavras têm mais de um sentido, têm sinônimos, ritmos, reverberações. As palavras variam na mesma língua, dependendo da época, da região. As palavras envelhecem, morrem, às vezes ressuscitam ou trocam de identidade. Quer dizer, uma boa tradução está mais para arte do que ciência e por isso o seu julgamento não é preto no branco, dando margem a muitos argumentos.
Ernesto Sábato disse que a tradução argentina de Orlando, de Virginia Woolf, é demasiado borgeana, porque logo no começo se fala num “vasto mouro”. Jorge Luis Borges achou curioso, porque a tradução foi feita por sua mãe, embora os editores tenham preferido usar o nome dele. De qualquer forma, a tradução brasileira de Orlando, assinada por Cecília Meireles, também fala num “vasto mouro”. Sentiram o problema?

Agora, no feijão com arroz de todo dia, há erros absurdos, tão objetivos como bofetadas na cara do leitor. Mas vamos repartir a culpa. Uma tradução sai das mãos do tradutor e passa pela leitura de um editor que, para estar no cargo, espera-se, deve ser sensível e inteligente. Depois ela ainda passa por uns dois ou três revisores que devem saber português para serem revisores. Se eles topam com algo estranho, comunicam ao editor que, se não pode resolver o caso sozinho, fala com o tradutor ou outra pessoa. O que não se sabe, se pesquisa. Parece um esquema seguro, não parece? Mas basta folhear algumas páginas de meia dúzia de livros para termos dúvidas.

Antônio Callado traduziu O amor nos tempos do cólera, de García Márquez, para a editora Record. Foi muito elogiado, inclusive por Paulo Francis. Fui dar uma espiada para ver se aprendia alguns macetes. Na primeira página, tem a cena do fotógrafo e do cachorro mortos. No original, se diz que o cachorro estava “amarrado de la pata del catre”, quer dizer, amarrado à ou na perna da cama. Segundo Callado, o bicho estava “atado pela pata ao catre”. Costume exótico da Colômbia? Não, cochilo bobo. Na segunda página, me cansei do cotejo. Não encontrei nada mais pitoresco, mas um punhado de exemplos que provam que os elogios à tradução foram feito sem o trabalho da comparação com o original.
No segundo parágrafo de 62 — Modelo para armar, de Julio Cortázar, se fala em “cadena de preguntas” (cadeia, corrente de perguntas). Algumas frases depois, isso repica em “otro elo a situar”. Glória Rodríguez, na sua tradução para a Civilização Brasileira, optou por “sequência de perguntas”. O elo se perdeu.

Mesmo autor, mesma tradutora, mesma editora: Histórias de cronópios e de famas. Na historinha “Conservação das lembranças”, se diz que os famas, “após fixada a lembrança com cabelos e sinais, embrulham-na da cabeça aos pés”. “Pelos y señas” é uma expressão — os famas fixam as lembranças em todos os detalhes, tim-tim por tim-tim.

No primeiro capítulo de Rayuela, há uma frase sobre os “matadores de brújulas”. Fernando Castro Ferro, na sua tradução também para a Civilização Brasileira, teve um ataque de realismo e “corrigiu” Cortázar para “destruidores de bússolas”.

Alguém que anda por aí, também do Cortázar, foi traduzido por Remy Gorga Filho para a Nova Fronteira. No conto “As caras da medalha”, se lê: “Em um café, depois de brigarmos rindo para saber quem pagaria a conta, olhamo-noscomo velhos amigos, inesperadamente camaradas, nos dissemos palavrões privados de sentido, garras de ossos brincando”. O que vocês acham? Tenho minhas dúvidas de que as garras de ossos possam passar por poesia. A mim causa um incômodo instantâneo. Alguma coisa me parece fora de esquadro.

É o seguinte: o Remy confundiu urso, “oso” em espanhol, com osso, “hueso”, em espanhol. Garras de ursos brincando pode não ser uma grande metáfora, mas, convenhamos, indica claramente o que se passa com aquele casal.

Agora, me parece que o Remy cometeu um erro mais sutil no título: “As caras da medalha”. Cara é uma palavra bastante forte em português. Entra em mais de uma expressão: cara de pau, cara de tacho, cara a cara, dar as caras, com a cara no chão, encher a cara, fechar a cara, estar na cara ou de cara, enfim, a lista é longa. Tudo isso pesa. Dá um ar mais popular ou mais cru à palavra. Mas, mais importante, quando falamos cara, pensamos no rosto todo. Os lados do rosto são as faces. Tanto que a expressão duas caras quer dizer falta de sinceridade, não o lado esquerdo e o direito. “As faces da medalha” não soa melhor e não é mais plausível? Mas se o conto tivesse sido escrito em português, provavelmente se chamaria “As faces da moeda”, nunca da medalha.


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