sexta-feira, agosto 7

Assim como o Rio,Paris assiste à derrocada de suas livrarias

Entre o Rio de Janeiro e Paris, as similitudes podem ser encontradas onde menos se espera. A capital francesa também tem a sua Livraria Leonardo da Vinci, que, após mais de seis décadas de serviços literários prestados aos cariocas, fechará as portas ainda este ano. No mítico bairro francês de Saint-Germain-des-Près, a La Hune, símbolo livresco da cidade, acaba de se despedir definitivamente dos parisienses aos 71 anos de vida.


Páginas viradas. Livraria La Hune, em Paris, a mais recente a fechar as portas
Foto: Fernando Eichenberg / Divulgação

Em pé na calçada, diante da grade rebaixada até a metade da porta de entrada, Catherine Martinez, de 53 anos, cigarro e um copo de plástico de café na mão, com o semblante triste, expressa o luto de quem perdeu um ente próximo.

— Trabalhei durante 19 anos na La Hune. Não é o fechamento de uma livraria, mas de uma história, de um emblema. E também não é um bom sinal para o bairro. Por causa disso, até voltei a fumar — admite, em uma pausa em meio ao desmonte do local.

Criada em maio de 1944 por Bernard Gheerbrant (1918-2010), conhecido apreciador de literatura e de arte, a livraria, depois de cinco anos situada na Rua Monsieur-Le-Prince, instalou-se no pós-guerra no endereço que fez sua fama: no número 170 do Bulevar Saint Germain, no coração do chamado “triângulo mágico” formado pelos cafés Deux Magots e Flore e a Brasserie Lipp. La Hune se tornou uma das referências da vida artística e literária do bairro, de sua efervescência intelectual e da boemia dos clubes de jazz. Em seu livro de ouro de clientes frequentes, figuram nomes como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Pablo Picasso, Marguerite Duras, Boris Vian, Jacques Prévert, François Truffaut, Jean-Luc Godard, Coco Chanel, Roland Barthes, François Mitterrand, Albert Camus, Merleau-Ponty, Henri Michaux, Max Ernst ou Alberto Giacometti — só para citar alguns. Os leitores também eram atraídos pelas efêmeras exposições de artistas. Entre os livros, podiam ser admiradas obras do próprio Picasso, René Magritte, Alexander Calder, Jean Dubuffet ou Pierre Alechinsky. Ainda no campo da arte, o proprietário se ilustrou como o primeiro organizador de uma mostra de Marcel Duchamp em Paris.

O recente anúncio do fim da livraria reverberou como um símbolo das transformações ocorridas há décadas no célebre bairro parisiense. A irreverência de outrora, traduzida em acalorados debates existencialistas ou surrealistas nas mesas dos cafés Flore e Deux Magots — e ainda celebrada por remanescentes espíritos nostálgicos —, hoje está sepultada na vizinha praça batizada de forma emblemática de Sartre-Beauvoir, em uma controversa homenagem ao casal de filósofos-escritores. Com o passar dos anos, o mundo dos negócios e das finanças, mais comum à Rive Droite, atravessou o Rio Sena e invadiu a Rive Gauche. Saint-Germain-des-Près adotou uma nova alma. Sartre foi destronado pelas grifes.

A batalha começou a ser perdida em 1997, quando a loja Armani assumiu o lugar da festejada e histórica drugstore então fincada na esquina da Rua de Rennes com o Bulevar Saint Germain. Há três anos, a La Hune — que em 1976 havia sido vendida por Bernard Gheerbrant ao grupo Flammarion — cedeu seus cobiçados metros quadrados à grife Louis Vuitton.

A livraria ganhou uma sobrevida nas proximidades, no ângulo da ruas de l’Abbaye e Bonaparte, mas já destituída de sua aura e de sua famosa escada central que levava ao segundo andar. Em queda de volume de negócios — de € 3,5 milhões, em 2009, para € 2,3 milhões, em 2013 —, não resistiu às leis do mercado. O grupo Madrigall — nascido da compra da Flammarion pela Gallimard —, prometeu fomentar a rentabilidade da livraria, modernizar sua imagem sem abalar sua identidade, e torná-la novamente uma referência do bairro. Mas capitulou, e negociou o local e também a marca com a rede YellowKorner, de comércio de fotografias de arte.

Em um dos cartazes colados nas vitrines da livraria nos dias posteriores ao fechamento — logo retirados a pedido dos novos proprietários —, Denis Geerbrant, filho do fundador, protesta: “É uma usurpação! O que propõe YellowKorner não me convém. O local não terá nada mais a ver com o que era o centro da vida cultural parisiense. Minha família está escandalizada pela cessão do nome a um grupo que nada tem a ver. Tudo isso é reflexo do que se tornou o bairro. É um sinal de que a vida intelectual francesa não é mais naquela do pós-guerra...”.

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