segunda-feira, outubro 5

Salman Rushdie, a eterna polêmica

Quem sabe que razões levaram Anis Khaliqi Dehlavi a mudar de nome. Era um jovem milionário de uma família de ascendência muçulmana de Mumbai e um estudioso sério do Islã – ainda que fosse militantemente ateu. Antes de ter filhos, chamava-se Anis Rushdie em homenagem a seu filósofo preferido, Ibn Rushd, conhecido no Ocidente pela versão latinizada de seu nome, já que era cordovês: Averroes. A mudança de nome revelou-se visionária, mas o dom profético de Anis só se manifestaria na geração seguinte. Durante os 11 anos de vigência da fatwa imposta a ele pelas autoridades iranianas, Salman Rushdie, o filho de Anis, encarnou a defesa dos ideais seculares de tolerância e liberdade de expressão contra as definições unicamente religiosas do mundo.


Borges se perguntava em O Golem se existe uma rosa nas letras da palavra “rosa”. Estaria Salman no sobrenome Rushdie? Como Ibn Rushd, o escritor inglês sofreu uma perseguição desproporcionada por defender uma visão racionalista do mundo – Ibn Rushd foi tradutor de Aristóteles. Ambos foram enclausurados, ambos viram seus livros arderem emo fogueiras. Averroes recuperou a liberdade em 1197 e deixou Al-Andalus. Morreu no exílio em 1198. Salman Rushdie teve melhor sorte; desde março de 2002 anda livre e em paz pelo mundo. É um homem alegre. Bastam alguns minutos em sua presença para se contagiar do entusiasmo quase infantil com que vê as coisas.

Entrevistei Salman Rushdie no escritório de seu agente, Andrew Wylie. Pudemos nos reunir para falar durante os dias mais quentes do ano na Costa Leste dos Estados Unidos, em que faz tanto calor e a umidade é tanta que altera a visão. Nova York é, nesses dias, uma miragem, no pior sentido da palavra: parece estar inteira atrás da fumaça de uma turbina de avião.

Rushdie é um homem de sua geração. Apesar da absoluta inclemência do tempo, chegou à entrevista de camisa, paletó e calças de lã – tudo leve, mas insuportável nesses dias. Vestia-se com a formalidade de um escritor britânico de sua idade – 68 anos – que comparece a uma entrevista marcada. Tirou o chapéu e sentou-se na principal poltrona da sala em que foram assinados contratos mais caros da história da literatura. Foi só então que notei que os alicerces de seu traje não condiziam com o resto de sua aparência: usava grandes tênis brancos – talvez a contribuição de Nova York a seu look – sem meias. É ali embaixo, naquilo que está tão evidente que não vemos a menos que prestemos muita atenção, onde talvez se defina inteiro. Rushdie parece o que se espera dele, mas, de perto, está claro que não o é. Perguntou para que time de beisebol torço. Respondi que para o Orioles. “Então lamento te informar”, disse, “que somos rivais: sou torcedor dos Yankees”. 

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