segunda-feira, julho 4

O arraial da branca atitude

Estou em Paraty. Dei-me conta, no momento em que me sentei para escrever esta coluna, de que já se passaram doze anos desde a primeira vez que visitei a Flip, para participar num debate com Caetano Veloso, moderado por Cacá Diegues. Foi um desses momentos intensos e maravilhosos, que ficam ecoando em nós pela vida afora e, nesse sentido, nunca se transformam em passado. Lembro-me que regressei a Luanda mesmo a tempo de assistir ao nascimento da minha filha. Desde esse dia até hoje a menina cresceu, lindíssima, e a Flip também. Muitos dos escritores que passaram pela Flip acabaram criando uma ligação com o festival e com a cidade que o acolhe. Comigo aconteceu algo semelhante. Confesso que as críticas ao evento, mesmo as mais justas, me irritam um pouco, como se fossem dirigidas a um familiar ou amigo próximo.

Black Girl Nerds - Its nice to know that there are many people like me out there.:
Uma crítica que sempre escuto tem a ver com a ausência de escritores negros. Este ano a acusação repetiu-se, com mais motivos do que em edições anteriores. O próprio curador do evento, Paulo Werneck, reconheceu a falha. Sou amigo da maior parte dos escritores africanos que participaram no evento ao longo dos últimos anos. Em 2008, aliás, moderei um debate entre a Chimamanda Adichie e Pepetela. Em conversa com Chimamanda, Teju Cole e Uzodinma Iweala, em diferentes ocasiões, e em diferentes lugares do mundo, todos eles manifestaram surpresa, e até alguma indignação, não tanto pelo fato de haver poucos escritores negros nas mesas, mas sim por terem falado para uma plateia quase exclusivamente branca, num país onde a maioria da população possui ascendência africana.

Esta deveria ser a questão central: por que não há mais negros nas plateias? A verdade é que continua a existir uma linha de cor separando aqueles que no Brasil têm acesso ao livro e a vasta maioria da população. Para formar escritores é preciso primeiro formar grandes leitores. Se queremos formar bons escritores negros teremos primeiro de formar muitos milhões de bons leitores negros.

Participei há poucas semanas num outro festival literário, muitíssimo menos badalado do que a FLIP, mas não menos interessante — a FLUPP, Festa Literária Internacional das Periferias. O debate decorreu no Teatro Mário Lago, na Vila Kennedy, no Rio de Janeiro. Teju Cole e Uzodinma Iweala teriam gostado de estar ali, diante daquela plateia, constituída por uma forte maioria de jovens de ascendência africana. Foi uma experiência gratificante. Não é muito comum encontrar leitores tão interessados e informados. A sofisticação de uma plateia avalia-se pela qualidade das perguntas. Aquela foi uma plateia particularmente interessante, cujas questões, em alguns casos, me apanharam desprevenido, levando-me a reavaliar convicções. Uma plateia assim é tudo o que um escritor pode ambicionar.

Júlio Ludemir, escritor, produtor cultural e um dos criadores da FLUPP, explicou-me que muitos daqueles jovens integram oficinas de literatura. Foi de um desses núcleos que emergiu, por exemplo, o escritor Jessé Andarilho, autor de “Fiel”, um romance, com a precisão de um testemunho, que conta a ascensão e queda de um menino no tráfico carioca. Foi também do mesmo ambiente que surgiu Yasmin Thayná, a jovem autora revelação de “Kbela”, um filme que discute a identidade da mulher negra através da sua relação com o cabelo. Yasmin deve lançar em breve o seu primeiro livro.

São experiências como a FLUPP que poderão mudar (provavelmente já estão a mudar) a FLIP. O curador de um festival literário não pode ser uma espécie de fiscalizador de raça, como os que existiam na África do Sul no tempo do apartheid. Quando me falam em raças lembro-me sempre da história de um pianista de jazz, nos Estados Unidos, que anunciou, durante uma conferência de imprensa, ter contratado um novo contrabaixista. “Esse novo contrabaixista é negro?” — quis saber um dos jornalistas. “Não sei.” — Respondeu o pianista. — “Nunca lhe perguntei.”

Eu próprio faço a curadoria de um festival literário, o Fólio — Festival Literário Internacional de Óbidos, em Portugal, que acontecerá em setembro. Enquanto escrevia esta coluna decidi fazer contas e descobri que dos 40 autores que teremos este ano em Óbidos, nas mesas principais, 17 são mulheres e oito têm origem africana ou asiática. Os dois escritores mais conhecidos, V. S. Naipaul e Salman Rushdie, são de origem indiana. Nada disto foi premeditado, evidentemente. Aconteceu assim. Não perguntei a raça a ninguém. Não me interessa. A verdade, contudo, é que o resultado final importa, e importa muito. Não existindo um equilíbrio, isso não significa que o festival deva ser condenado como racista ou machista. Mas é uma indicação de que a sociedade, no seu conjunto, está doente.

José Eduardo Agualusa

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