terça-feira, março 13

A velha

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Era no ano de 1832, uma tarde de verão como hoje calmosa, seca, mas o céu puro e desabafado. À porta dessa casa entre o arvoredo, estava sentada uma velhinha bem passante dos setenta, mas que o não mostrava. Vestia uma espécie de túnica roxa, que apertava na cintura com um largo cinto de couro preto, e que fazia ressair a alvura da cara e das mãos longas, descarnadas, mas não ossudas como usam de ser mãos de velhas; toucava-se com um lenço da mais escrupulosa brancura, e posto de um jeito particular a modo de toalha de freira; um mandil da mesma brancura, que tinha no peito e que afetava, não menos, a forma de um escapulário de monja, completava o estranho vestuário da velha. Estava sentada numa cadeira baixa do mais clássico feitio: textualmente parecia a que serviu de modelo a Rafael para o seu belo quadro da Madonna della Sedia.

Como nota histórica e ilustração artística, seja-me permitido juntar aqui em parêntesis que, não há muito, vi em casa de um sapateiro remendão, em Lisboa, no Bairro Alto, uma cadeira tal e qual; torneados piramidais, simples, sem nobreza, mas elegantes.

Tornemos à velhinha.

Estava ela ali sentada na dita cadeira, e diante de si tinha uma dobadoira, que se movia regularmente com o tirar do fio que lhe vinha ter às mãos e enrolar-se no já crescido novelo.

Era o único sinal de vida que havia em todo esse quadro. Sem isso, velha, cadeira, dobadoira, tudo pareceria uma graciosa escultura de António Ferreira ou um daqueles quadros tão verdadeiros do morgado de Setúbal.

O movimento bem visível da dobadoira era regular, e respondia ao movimento quase imperceptível das mãos da velha. Era regular o movimento, mas durava um minuto e parava, depois ia seguindo outros dois, três minutos, tornava a parar: e nesta regularidade de intermitências se ia alternando como o pulso de um que treme sezões.

Mas a velha não tremia, antes se tinha muito direita e aprumada: o parar do seu lavor era porque o trabalho interior do espírito dobrava, de vez em quando, de intensidade, e lhe suspendia todo o movimento externo. Mas a suspensão era curta e mesurada; reagia a vontade, e a dobadoira tornava a andar.

Os olhos da velha é que tinham uma expressão singular: voltada para o poente, não os tirou dessa direção nem os inclinava de modo algum para a dobadoira que lhe ficava um pouco mais à esquerda. Não pestanejavam, e o azul de suas pupilas, que devia ter sido brilhante como o das safiras, parecia desbotado e sem lume.

O movimento da dobadoira estacou agora de repente, a velha poisou tranquilamente as mãos e o novelo no regaço, e chamou para dentro da casa:

— Joaninha?

Uma voz doce, pura, mas vibrante, destas vozes que se ouvem rara vez, que retinem dentro da alma e que não esquecem nunca mais, respondeu de dentro:

— Senhora? Eu vou, minha avó, eu vou.

— Querida filha!... Como ela me ouviu logo! Deixa, deixa: vem quando puderes. É a meada que se me embaraçou.

A velha era cega, cega de gota serena, e paciente, resignada como a providência misericordiosa de Deus permite quase sempre que sejam os que neste mundo destinou à dura provança de tão desconsolado martírio.

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