sexta-feira, março 9

O jagunço e o bacharel

Quando Deonísio da Silva, espécie de Indiana Jones na caça à origem das palavras, me avisou que o poeta Carlos Nejar queria me incluir na programação de seminário sobre Guimarães Rosa, tremi nas bases. E mais ainda: abrindo o ano desta Casa de Machado de Assis. Que desafio para esse cangaceiro das palavras, sem formação acadêmica para me escudar nem leitura recente em que me apoiar, ao discorrer sobre o percurso daquele jagunço das letras! Contudo, não sou de fugir de desafios, e não me abalei com a segunda parte da proposta: teria de fazer uma conexão – provável, porém pouco estudada – entre o gênio de Cordisburgo e o bruxo do Cosme Velho. Aí, danou-se! Mas me dispus a navegar nas carrancas do Velho Chico e a viajar de carruagem nas priscas eras da República entre a rua Matacavalos e a praia do Flamengo.

Como diria meu avô Chico Ferreira, que diacho podia haver que identificasse o amanuense que fundou a Academia Brasileira de Letras com o diplomata e ex-médico fulminado por um infarto horas após tomar posse nesta venerável instituição cultural que reúne intelectuais e notáveis? Muito amiga de minha mulher, Isabel, aqui presente, e minha, a professora Márcia Lígia Guidin, cuja tese de doutorado na USP versa sobre Machado, sugeriu-me que abordasse dois dos principais relatos dos gênios da literatura pelo que têm em comum. Duas de suas obras-primas, Dom Casmurro e Grande Sertão:Veredas, são relatos de velhos saudosos de episódios do passado, protagonizados pelas duas mais sedutoras mulheres da literatura nacional em todos os tempos: Capitolina, no formoso e frenético burgo de São Sebastião do Rio de Janeiro, ex-Corte do Império e capital da República Velha, e Deodorina, nos ermos e ignotos sertões ditos dos Gerais às margens do Velho Chico e seus afluentes. Os episódios, ocorridos no século 19, presumivelmente ainda no Segundo Império, são narrados por velhos que viveram amores mal resolvidos com as damas citadas, que se tornaram as verdadeiras protagonistas, conhecidas tempos afora pelos apelidos familiares: Capitu e Diadorim.

Aprendi desde cedo que quem tem amigo não morre pagão. Recorri à cultura inesgotável dos leitores obsessivos José Mario Pereira e Christine Ajuz e eles prontamente me socorreram. Outro leal amigo, Maurício Melo Júnior, que acaba de lançar um romance e tem obra biográfica de destaque no campo do documentário sobre grandes escritores no canal de TV do Senado Federal, citou-me a coincidência notória de que o bruxo do Cosme Velho e o filho de Cordisburgo (a cidade do coração) publicaram contos com o mesmo e significativo título – O Espelho –, o primeiro em Papéis Avulsos, o segundo em Primeiras Estórias. Em comum entre os dois, porém, apenas o tema e o título. Machado escreveu uma novela de realismo mágico avant-la-lettre. E Rosa aventurou-se por digressões psicanalíticas, como se abordasse um assunto mais científico do que ficcional.

Disposto a evitar o naufrágio de minha alocução e o tédio de meu público, eu não poderia apelar para a memória, cada vez mais escassa nesta idade em que tenho, se não alcançado, pelo menos me aproximado da dos narradores paralelos no momento em que resolveram dividir suas experiências e aventuras, no caso de Machado, com o distinto público leitor urbano da Corte e, no de Rosa, com o anônimo e silente ouvinte que passou três noites do sertão escutando, certamente com encantamento, embora não registrado nem relatado.

Prestes a completar 67 anos – se Deus, Nosso Senhor, me permitir comemorar o próximo aniversário, em maio – não podia contar com o socorro da memória de minhas leituras juvenis dos dois clássicos. Lembro-me que os li aos 14 anos, portanto há 52 distantíssimos carnavais, num quarto no quintal da casa de meus pais, no centro de Campina Grande, Paraíba, onde cursava o científico no Colégio Estadual da Prata. Adquiri-os, ambos, na Livraria Pedrosa, cujo dono, José Pedrosa, se dava ao luxo de importar da Alemanha livros para um freguês de escol, o saudoso acadêmico Ariano Suassuna. Primeiramente, devo ter lido a saga de Bento, o bacharel, que chegou à senectude, anunciada ao leitor incauto, carregando o significativo apelido infantil de Bentinho, o que não deixa de sugerir que jamais atingiria o que chamamos de maturidade. Somente depois de algum tempo, não muito longo, me deixei levar pela viagem, ou melhor, pela travessia de Riobaldo por veredas, rios e vilarejos do interior mais ermo, entre o sul da Bahia e sua cidade natal.

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É claro que me apaixonei perdidamente por Capitu, mas isso não foi algo que pudesse considerar de muita relevância na minha pré-adolescência de leitor ativo, atento e deslumbrado. Afinal, o caso de identificação mais apaixonante que vivi nos meus 14 anos não foi com nenhum personagem feminino, mas com um jovem de minha mesma faixa etária à época: Werther, de Goethe. Foi tão fulminante que cheguei a considerar a hipótese de cometer suicídio, o que, como se sabe, acometeu muitos meninos de minha idade, em “Oropa, França e Bahia”. Mas isso não interessa agora. O que importa é que me deixei levar pelos devaneios, primeiro com Capitu e depois com Diadorim, apesar dos relatos abertamente opostos a respeito das duas: a adoração que virou desprezo do bacharel Bento Bentinho e a veneração ampliada com o distanciamento dos fatos narrados pelo jagunço RiobaldoTatarana Urutu-Branco sobre o mais que amigo que conheceu na infância como Reinaldo, depois transformado no companheiro Diadorim em vários bandos de jagunços aos quais a dupla pertenceu.

Desde que li Dom Casmurro, há 52 anos, não me lembro de haver voltado ao clássico de Joaquim Maria, muito embora tenha guardado todos os momentos de genialidade que o autor carioca produziu, como a progressiva descrição dos olhos de ressaca até a veneração pela forma de seus braços desnudos nos bailes que frequentava. Durante todo o enlevo do narrador pela protagonista, que ocupa pelo menos dois terços do livro, apesar de não ter em nenhum momento se referido a uma formosura que a tornasse uma Tônia Carrero do século 19, são feitas várias referências aos olhos de Capitu, tema que virou uma espécie de coqueluche para os leitores. É o caso do capítulo 32, Olhos de ressaca, no qual Bento Bentinho descreve os olhos de Capitu da seguinte maneira:

“Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que…
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”.
É impossível ler essa descrição sem ser assaltado pelo êxtase causado pela emoção provocada pela beleza da narrativa, pela elegância do estilo e pela veneração do autor por nossa língua portuguesa. Do capítulo específico sobre os braços, extraí alguns parágrafos que lerei para nosso deleite:
“De dançar gostava, e enfeitava-se com amor quando ia a um baile; os braços é que… Os braços merecem um período.
 Eram belos, e na primeira noite que os levou nus a um baile, não creio que houvesse iguais na cidade, nem os seus, leitora, que eram então de menina, se eram nascidos, mas provavelmente estariam ainda no mármore, donde vieram, ou nas mãos do divino escultor. Eram os mais belos da noite, a ponto que me encheram de desvanecimento.
 Conversava mal com as outras pessoas, só para vê-los, por mais que eles se entrelaçassem aos das casacas alheias. Já não foi assim no segundo baile; nesse, quando vi que os homens não se fartavam de olhar para eles, de os buscar, quase de os pedir, e que roçavam por eles as mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido. Ao terceiro não fui, e aqui tive o apoio de Escobar, a quem confiei candidamente os meus tédios, concordou logo comigo.
 — Sanchinha também não vai, ou irá de mangas compridas; o contrário parece-me indecente.
 — Não é? Mas não diga o motivo; hão de chamar-nos seminaristas. Capitu já me chamou assim."
Nem por isso deixei de contar a Capitu a aprovação de Escobar. Ela sorriu e respondeu que os braços de Sanchinha eram mal feitos, mas cedeu depressa, e não foi ao baile; a outros foi, mas levou-os meio vestidos de escomilha ou não sei quê, que nem cobria nem descobria inteiramente, como o cendal de Camões”.

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