domingo, abril 8

Assim começa o livro...

— Pergunta a esse branco se quer que chame o rio.

São as palavras da rainha Dabondi. Não ouso traduzi -las para o capitão Mouzinho de Albuquerque. Nem ele escutaria tão estranha interpelação, ocupado que está em comandar os seus homens, que chapinham num baixio do rio Limpopo. O barco em que seguíamos encalhou num banco de areia e há horas que os soldados portugueses tentam libertar a lancha. Alguns, mais afoitos, têm o corpo meio submerso e empurram os costados da embarcação. Poucas vezes se viu aquele cenário: brancos esfalfando -se à torreira do sol enquanto negros aguardam sentados numa confortável sombra. Mouzinho ordena aos soldados que regressem ao convés: as águas estão infestadas de crocodilos.

Não é o atraso que incomoda Mouzinho. Desde que saímos de Zimakaze a viagem decorreu célere e sem paragem. O que o capitão teme são os perigos do mato em redor, onde, sem que se veja vivalma, já se escutam vozes e se movem sombras furtivas. Não tarda que suceda uma emboscada para resgatar os prisioneiros que viajam no seu barco.

A rainha Dabondi é uma dessas prisioneiras. Mais do que o capitão, ela está tensa com aquela paragem. É ela que ergue subitamente os braços a mandar que todos se calem. Um arrepio percorre toda a tripulação: como que nascida do chão, uma multidão de homens, mulheres e crianças surge na margem. Mouzinho ordena aos seus soldados que preparem as armas. Um silêncio frio se instala e o próprio rio se cala.

— Posso chamar as águas? — volta a perguntar Dabondi. Depois dirige -se a mim: — Disseste a esse branco que falo a língua dos rios?

Uma palavra sua e o rio Limpopo, como um cachorro dócil, viria comer -lhe à mão. Mouzinho murmura entredentes: Calem -me essa mulher! A tensão é insuportável. De súbito a rainha Dabondi salta do barco e caminha na direção da silenciosa multidão, que foi crescendo na margem.
Todos os olhos se centram na rainha que atravessa as águas rasas do rio. Os pés de Dabondi não tocam água nem terra. Na verdade, a rainha não caminha. Ela executa uma dança. O balançar das ancas faz soar as anilhas de cobre que lhe rodeiam os tornozelos.

Chegada à margem, a rainha fala animadamente com as criaturas que a rodeiam. Nada podemos escutar mas percebemos que aponta com insistência para nós. De súbito aquela turba precipita -se enlouquecida sobre o barco. Os portugueses, aterrorizados, ainda levam as armas aos ombros. Mas já não há tempo. Centenas de homens e mulheres já venceram o vau do rio e atiram -se
de ombros, pernas e braços contra o casco da lancha. A embarcação balança com violência, os tripulantes gritam, os cavalos escouceiam. 

Num ápice o barco volta a flutuar. E só quando se confirma que estão unidos numa intenção pacífica é que todos, negros e brancos, gritam de entusiasmo. Ajudam Dabondi a regressar ao convés. A rainha está ofegante mas feliz. Pergunto-lhe por que ajudou os seus carcereiros. 

— Alguém me espera no fim desta viagem — responde. 

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