segunda-feira, janeiro 28

Assim começa o livro...

Havia três noites que eu não dormia. Na quarta, por volta de meia‑noite, peguei uma tesoura, uma lanterna, uma alavanca e penetrei sem ruído numa igreja, decidido a ver o esqueleto e a tocar as ossadas que havia seis anos minha imaginação revestia de uma forma celeste e que minha razão ia restituir ao eterno vazio contemplando‑as com calma.

Cheguei à pedra do Hic est, ergui‑a sem muito esforço e comecei a descer a escada; lembrava‑me de que havia doze degraus. Mas não havia descido cinco e minha cabeça já estava perturbada. Ignoro o que acontecia dentro de mim: se eu não tivesse passado por isso, nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tanto terror covarde. Fui tomado pelo frio da febre, o medo fez tremer meus dentes; deixei cair a lanterna; senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo.

Um espírito sincero não teria tentado superar essa aflição. Ele teria desistido de perseguir uma provação acima de suas forças; teria adiado seu encontro para um momento mais favorável; teria esperado com paciência e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais. Mas eu não queria desmentir a mim mesmo. Estava indignado com minha fraqueza; queria romper e atrofiar minha imaginação. Continuei a descer nas trevas, mas meu espírito esvaneceu e me tornei vítima das ilusões e dos fantasmas.

Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Érebo. Enfim, cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz lúgubre pronunciar estas palavras que parecia confiar às entranhas da terra:


“Ele não subirá a escada.”

Nesse instante, ouvi erguer‑se em minha direção, do fundo de abismos invisíveis, mil vozes que cantavam num ritmo estranho:

“Vamos destruí‑lo! Que ele seja destruído! O que ele vem fazer no meio dos mortos? Que seja levado de volta ao sofrimento! Reconduzido à vida! ”

Então uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no último degrau de uma escada tão vasta como a base de uma montanha. Atrás de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho; à minha frente, apenas o vazio, o abismo do éter, o azul sombrio da noite sob meus pés e sobre minha cabeça. Fui tomado por uma vertigem e, saindo da escada, sem pensar que fosse possível subir por ela, lancei‑me no vazio, blasfemando. Mas mal pronunciara as sentenças de maldição, o vazio se encheu de formas e cores confusas; aos poucos, percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria, e avancei tremendo. A escuridão ainda reinava ao meu redor; mas o fundo da abóbada iluminava‑se com um clarão vermelho, revelando formas estranhas e terríveis da arquitetura. Todo esse monumento parecia, por sua força e tamanho gigantesco, ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras. Não distinguia os objetos mais próximos de mim; mas à medida que avançava, adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro, e meu terror aumentava a cada passo. Os enormes pilares que sustentavam a abóbada, e até mesmo os ornatos desta, representavam homens de um tamanho sobrenatural, todos entregues a torturas espantosas: uns, suspensos pelos pés e espremidos por serpentes monstruosas, mordiam o solo, e seus dentes penetravam no mármore; outros, afundados no chão até a cintura, eram puxados de cima, uns pelos braços com a cabeça no alto, outros, de cabeça para baixo, voltavam‑se para capitéis compostos por figuras humanas debruçadas sobre eles e obstinadas a torturá‑los. Outros pilares representavam um enlaçamento de figuras que se devoravam, e cada uma delas mostrava apenas um tronco roído até os joelhos ou ombros, mas cuja cabeça furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto. Havia os que, esfolados pela metade, se esforçavam, com a parte superior do corpo, para desprender a pele da outra metade, presa ao capitel ou retida na base; e ainda outros, que, ao se debaterem, haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressão de ódio e sofrimento indizíveis. Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos, revestidos de forma humana, mas de uma feiúra espantosa, ocupados em decepar cadáveres, devorar membros de corpos humanos, torcer vísceras, refestelar‑se de despojos sanguinolentos. Da abóbada pendiam, no lugar de fechos e rosáceas, crianças mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes, ou que, fugindo atemorizadas dos devoradores de carne humana, se precipitavam com a cabeça para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo
George Sand, "Esperidião"

Nenhum comentário:

Postar um comentário