quarta-feira, janeiro 9

Assim começa o livro...

Hoje, quando acordei de um cochilo, o Homem Sem Face estava à minha frente. Sentado na poltrona, diante do sofá onde eu dormia, ele me fitava fixamente com os olhos imaginários de quem não tem face.

O homem era alto e usava as mesmas roupas da última vez em que o encontrei. Trazia na cabeça um chapéu preto de abas largas, que escondia metade do seu rosto sem face, e vestia um sobretudo comprido e também de cores escuras. 

— Vim para que você pinte meu retrato — disse ele com voz seca, sem entonação, depois de se certificar de que eu estava completamente desperto. — Você me prometeu que faria isso, lembra?

— Sim, lembro. Naquele dia não pude fazer o desenho, porque não tinha papel — respondi, também com voz seca e sem entonação. — Então, em vez de um retrato, lhe entreguei um amuleto no formato de pinguim.

— Verdade. Estou com ele aqui.

Ao fim dessas palavras, ele esticou o braço, que era muito comprido, e abriu a mão direita. Na palma, havia um pequeno pinguim de plástico. Era o pingente para celular usado como amuleto. O Homem Sem Face largou o amuleto sobre o tampo de vidro da mesa, com um pequeno ruído seco.

— Pode ficar com ele. Talvez você esteja precisando. Com certeza, servirá como amuleto para você proteger as pessoas queridas ao seu redor. Só que em troca quero que você faça o meu retrato.

Fiquei desnorteado.

— Mas… assim, de repente?… Nunca retratei uma pessoa sem rosto.

Minha garganta estava seca.

— Ouvi dizer que você é um excelente retratista. Além disso, para tudo há uma primeira vez — afirmou o Homem Sem Face.

Em seguida, riu. Ao menos, tive a impressão de que riu. Escutei um som parecido com um riso, como o eco vazio do vento no fundo de uma caverna. Ele tirou o chapéu que cobria metade do seu rosto. No lugar da face, havia apenas um redemoinho de névoa leitosa, girando lentamente.

Me levantei e trouxe do ateliê um caderno de esboços e um lápis macio. Depois me sentei no sofá e tentei retratar o Homem Sem Face. No entanto, não sabia por onde começar, nem como buscar um ponto de partida. Afinal, o que havia ali era apenas o nada. Como eu poderia dar forma à ausência de qualquer coisa? Além do mais, a névoa leitosa que envolvia esse nada se modificava o tempo todo.

— É melhor você se apressar — disse o Homem Sem Face. — Não posso demorar aqui.

Meu coração batia com um som seco. Não tenho muito tempo. Preciso ser rápido. Ainda assim, os dedos que seguravam o lápis estavam paralisados no meio de um gesto e não queriam se mover de jeito nenhum, como se tudo abaixo do meu pulso estivesse dormente. Ele estava certo, eu tinha pessoas para proteger e, de resto, desenhar era a única coisa que eu sabia fazer. Apesar disso, não conseguia de jeito nenhum desenhar o rosto daquele Homem Sem Face. Fiquei encarando, impotente, a névoa que se agitava.

— Sinto muito, mas o tempo acabou — observou o Homem Sem Face depois de um momento, antes de soltar um longo suspiro pela boca da sua face inexistente, exalando o ar como a neblina que paira sobre um rio.

— Espere, por favor! Só mais um pouco e eu…

O homem colocou o chapéu preto de volta na cabeça, escondendo mais uma vez metade do rosto.

— Qualquer dia, farei uma nova visita. Quem sabe então você seja capaz de me desenhar. Até lá, guardarei este amuleto de pinguim.

Assim, o Homem Sem Face desapareceu, em um piscar de olhos, como o nevoeiro varrido subitamente por uma rajada de vento. Restaram apenas a poltrona vazia e a mesa, já sem o amuleto de pinguim sobre o tampo de vidro.

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