sexta-feira, abril 24

Os nossos livros

As circunstâncias que eu e o acaso, esse outro nome de deus, definimos para a minha vida fizeram-me morar, até ao dia de hoje, em onze casas de quatro distritos. Há uma cama que se deitou em várias delas (com mais algumas mudanças, terei de passar a chamar-lhe catre), mas só os livros me acompanharam sempre. Os mais antigos já foram encaixotados dez vezes. A princípio, talvez tenham temido não voltarem a exibir as lombadas numa estante, ou nunca mais poderem abrir-se perante os olhos de alguém num comboio, mas imagino que tenham acabado por acostumar-se a viajar em caixotes dentro de automóveis, como os cães ou os gatos nas transportadoras. Mesmo nas minhas casas de estudante, uma delas um sótão velho e frio, a estantezeca que me acompanhava dava ordem e abrigo àqueles que eram, mesmo sendo poucos, mas ainda assim sem qualquer dúvida, os mais importantes dos meus pertences. Ainda recordo onde, a que custo e com que alegria adquiri muitos dos livros que li na velha e muito confortável poltrona de napa verde e pernas de madeira escura que pertencera à minha bisavó e que também viajava sempre comigo (a própria poltrona também dava uma crónica, até porque acabou numa fogueira, alimentada por jornais, revistas, postais antigos e, imagine-se, adivinharam, livros).

Essa pequenina biblioteca itinerante foi crescendo e, de casa em casa, fez-se a já pesada biblioteca que hoje é. De todo o modo, contrasta enormemente – é formiga perante elefante – com a mais impressionante biblioteca particular que já vi e sobre a qual, com a devida autorização do proprietário e curador, aqui deixarei algumas linhas.


Há uns anos, o escritor Valter Hugo Mãe disse-me: tens de ver. E eu alinhei, movido pela vontade de ver para crer. A casa era a do cineasta e crítico de cinema Lauro António, em Lisboa, e o adjetivo que melhor lhe serve é: inesquecível. Não era uma casa onde morasse gente; era antes uma casa onde moravam livros e na qual estes permitiam que também morassem pessoas. Por usucapião, os livros tinham tomado conta da casa, ela era deles e eles estavam em contínua multiplicação há décadas. Tudo ali eram livros. Talvez para se lerem uns aos outros, alguns até se tinham barricado numa divisão, que ocupavam por completo. Estavam em pilhas, do chão ao teto, do fundo até à entrada, e decidiram jogar-se contra a porta, que, tendo sobre ela o peso de tanta literatura, não se conseguia abrir. Acaso um dia tenham decidido arrancá-la, uma avalancha de histórias terá rolado pelo corredor afora. Inolvidáveis, também, as estantes desse corredor, nas quais moravam, organizadas com cuidados de joalheiro, as obras completas dos grandes autores portugueses. E o sofá? Belíssimo, apesar de não lhe ter visto um centímetro – apenas o pude adivinhar. Também ele estava tomado pelos livros – era assento deles e não dos humanos por eles autorizados a viverem naquela casa de nove assoalhadas – e só se identificava por ser um volume retangular de grandes dimensões revestido de livros algures naquilo que se imagina ter sido o centro do que fora uma sala. Havia livros por todo o lado, circular era fazer gincanas sucessivas entre pilhas que precariamente equilibravam saberes e mundos em cima de outras pilhas. Como estalactites e estalagmites, umas pareciam vir do teto e outras nascer do soalho aquecido por tanto papel. Eram mais de – pasmemo-nos – oitenta mil os volumes que por amor e dedicação extremos aos livros Lauro António guardava naquele apartamento – sim, leram bem, num apartamento. Recentemente, cerca de metade desta biblioteca foi oferecida à Câmara de Setúbal, que inaugurará em breve um espaço com o nome do crítico e cineasta.

Poderia estender esta crónica durante linhas infindas, dando conta de imagens e pormenores daquele espaço mirífico que se me agarraram à lembrança. Não o farei, porque embora o fascínio desta biblioteca venha da sua dimensão e da forma como, qual árvore que extravasa o recipiente em que a procuraram conter, tomou toda a casa e não parou de crescer (inclusivamente dentro da memória e da imaginação de quem a visitou), as bibliotecas não precisam de ser gigantescas para nos comoverem. E comove-me tanto a escassez da minha pequena estante de estudante como a fascinante casa-livro que aqui apresentei. Numa e noutra, nestas duas como em quaisquer outras bibliotecas, pequenas ou grandes, lá estão o primeiro livro que nos apaixonou, o livro que nos foi oferecido por alguém especial, o livro que fez de nós leitores, o livro que nos pôs a escrever, o livro que nos fez entender determinada realidade, o livro que nos demonstrou que não percebemos nada de realidade nenhuma, o livro que nunca lemos mas que haveremos de ler, o livro que tem aquela dedicatória do autor, o livro que tem aquela dedicatória de um amor antigo, etc.

Poucos ou muitos, e mesmo partilhando o que neles está escrito com milhares ou milhões de outras pessoas, aqueles são os nossos livros, os objetos através dos quais chegaram até nós as palavras que, não duvidemos, alguém escreveu para nós. A biblioteca de cada um é um conjunto de lugares simbólicos, insubstituíveis; é um espaço sagrado que nos alicerça e conforta, ao qual queremos sentir que podemos voltar sempre que quisermos ou entendermos necessário; cheia de portas por e para abrir, a biblioteca de cada um é uma casa dentro de outra casa e, voltemos a não duvidar, porque no que toca a valorizar os livros não há que ter senão certezas, o lugar mais valioso na casa de cada um, mesmo que confinada a uma estantezeca com ar caduco.

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