quinta-feira, abril 30

Poirot e os quatro relógios (prólogo)

A tarde do dia 9 de Setembro foi exatamente igual a qualquer outra tarde. Nenhuma das pessoas que viriam a estar relacionadas com os acontecimentos desse dia poderia alegar que tivera uma premonição de tragédia. (Com excepção, evidentemente, de Mrs. Packer, de Wilbraham Crescent, 47, a qual era especializada em premonições e, depois, descreveu sempre, com grande minúcia de pormenores, os estranhos pressentimentos e as tremuras que tivera. Mas Mrs. Packer estava, no 47, tão distante do 19, e o que neste número se passou relacionou-se tão pouco com ela, que lhe pareceu absolutamente desnecessário ter uma premonição.)

No Gabinete de Secretariado e Dactilografia Cavendish, dirigido por Miss K. Martindale, no dia 9 de Setembro fora um dia igual a tantos outros, um dia rotineiro. O telefone tocara, as máquinas de escrever tinham matraqueado como de costume e o nível de trabalho fora médio, nem acima nem abaixo do habitual.

O gênero também fora o costumado, sem interesse especial. Até às duas e trinta e cinco da tarde, o dia 9 de Setembro não teve nada a distingui-lo de outro dia qualquer.

Às duas e trinta e cinco, a extensão de Miss Martindale deu sinal e Edna Brent, que trabalhava no escritório contíguo, atendeu-a com a voz ofegante e um nadinha nasalada do costume, enquanto empurrava um caramelo para um dos lados da boca.

- Que deseja, Miss Martindale?

- Já lhe disse que não deve falar assim quando atende o telefone, Edna! Pronuncie as palavras com clareza e domine a respiração.

- Desculpe, Miss Martindale.

- Já foi melhor. Se tentar, consegue. Mande-me a Sheila Webb.

- Ainda não voltou do almoço, Miss Martindale.

- Ah! - Miss Martindale viu que eram duas horas e trinta e seis minutos, o que significava que Sheila estava exatamente seis minutos atrasada. - Mande-ma assim que chegar - acrescentou, a pensar que, nos últimos tempos, Sheila Webb se desmazelava um pouco.

- Sim, Miss Martindale.

Edna passou de novo o caramelo para o meio da língua e, a chupar prazenteiramente, recomeçou a dactilografar o romance Amor Nu, de Armand Levine.

O erotismo forçado da obra deixava-a indiferente - como, aliás, à maioria dos leitores de Mr. Levine, não obstante os seus esforços. Armand Levine era uma prova convincente de que nada pode ser mais enfadonho do que a pornografia enfadonha. Apesar das capas sinistras e dos títulos provocantes, as suas vendas decresciam todos os anos e a última conta de serviços datilográficos já lhe fora apresentada três vezes, em vão.

A porta abriu-se e Sheila Webb entrou, um bocadinho ofegante.

- A Sandy Cat * chamou-te - informou Edna.

* Gata Loura. (N. da T.)

- Já é preciso ter azar! - exclamou Sheila, a fazer uma careta. - No único dia em que chego atrasada!

Passou a mão pelo cabelo, pegou num lápis e num livro de apontamentos e bateu à porta da directora.

Miss Martindale levantou a cabeça. Era uma mulher de quarenta e tal anos, que respirava actividade e eficiência e devia a alcunha de Sandy Cat ao seu cabelo ruivo-claro e ao seu nome próprio de Katherine.

- Chegou atrasada, Miss Webb.

- Peço desculpa, Miss Martindale. Houve um grande engarrafamento de trânsito...

- Há sempre um grande engarrafamento de trânsito a esta hora do dia.

Devia contar com isso e sair de casa mais cedo. - Consultou a sua agenda e prosseguiu: - Telefonou uma tal Miss Pebmarsh, que precisa de uma estenógrafa para as três horas e se mostrou particularmente interessada em que fosse você. Já trabalhou alguma vez para ela?

- Não me lembro, Miss Martindale. Pelo menos ultimamente, não trabalhei.

- A morada é Wilbraham Crescent, dezanove...

- Calou-se, com um ar interrogador, mas Sheila Webb abanou a cabeça.

- Não me lembro de lá ter ido.

Miss Martindale consultou o relógio.

- Três horas... Consegue lá chegar a tempo. Tem outros compromissos, para esta tarde? - Passou os olhos pela agenda, que tinha a seu lado. - Professor Purdy, Curlew Hotel, às cinco horas. Deve chegar antes disso, mas se não chegar mandarei a Janet.

Mandou-a embora, com um aceno de cabeça, e Sheila voltou para o escritório.

- Alguma coisa interessante, Sheila?

- Ora, mais um daqueles dias chatos... Uma velhota qualquer de Wilbraham Crescent e, às cinco horas, o professor Purdy... e todos aqueles horríveis nomes arqueológicos! Como desejaria que, de vez em quando, acontecesse alguma coisa emocionante, para variar!

A porta de Miss Martindale abriu-se e a diretora avisou:

- Esqueci-me de um pormenor, Sheila. Se Miss Pebmarsh não estiver, quando chegar, entre, pois a porta não estará fechada. Entre para a sala que fica à direita do vestíbulo e espere. Não se esquece ou prefere que escreva num papel?

- Não me esquecerei, Miss Martindale.

A diretora voltou para o seu santuário.

Edna Brent tirou debaixo da cadeira um sapato um bocado espampanante, cujo salto altíssimo e muito fino se despregara.

- Como diabo regressarei a casa? - perguntou, tristemente.

- Deixa-te de lamúrias, alguma coisa se há-de arranjar - respondeu-lhe uma das outras raparigas, quase sem deixar de martelar as teclas.

Edna suspirou e meteu na máquina uma nova folha de papel. 'O desejo dominava-o. Com dedos frenéticos rasgou o tecido finíssimo que lhe cobria os seios e empurrou-a para a sopa'...

- Bolas! - resmungou Edna, a procurar a borracha, ao ver que escrevera "a sopa" em vez de "o sofá".

Sheila pegou na malinha de mão e saiu.

Wilbraham Crescent era uma fantasia criada por um construtor de 1880, mais ou menos, e constava de uma meia-lua de duas fileiras de casas com os jardins de permeio, traseiras com traseiras. Este conceito arquitetónico causava constantes dificuldades às pessoas que não conheciam o lugar. As que chegavam ao lado exterior da meia-lua tinham dificuldade em encontrar os números mais baixos, e as que chegavam ao lado interior viam-se às aranhas para descobrir os mais altos.

As casas eram limpas, afetadas, com varandas artísticas e um ar muitíssimo respeitável. O modernismo mal lhes tocara ainda, pelo menos exteriormente. As cozinhas e as casas de banho tinham sido as primeiras divisões a sofrer as consequências das mudanças.

Não havia nada de especial no número 19. Tinha cortinas impecáveis e um puxador muito reluzente, na porta principal. De ambos os lados do caminho que conduzia à entrada erguiam-se roseiras.

Sheila Webb abriu a cancela, encaminhou-se para a porta principal e tocou à campainha. Aguardou um ou dois minutos e, como não lhe respondessem, obedeceu às instruções recebidas. Girou o puxador, a porta abriu-se e ela entrou. A porta do lado direito do vestíbulo estava entreaberta. Sheila bateu, aguardou um momento e entrou também.

Encontrou-se numa vulgar e aconchegada sala de estar, talvez um pouco atravancada para o gosto moderno. A única coisa extraordinária que lhe chamou a atenção foi a abundância de relógios: um relógio de pé, a um canto; um relógio de porcelana de Dresden, na chaminé; um relógio de prata, na secretária; um pequeno relógio dourado de fantasia, numa papeleira, e numa mesa, junto da janela, um velho relógio de viagem, com uma caixa de cabedal, desbotado e o nome ROSEMARY * em letras douradas e já um pouco apagadas, a um canto.

Sheila olhou, um pouco surpreendida, para o relógio da secretária, segundo o qual já passava das quatro e dez. Olhou para o da chaminé e verificou que se encontrava nas mesmas circunstâncias.

Estremeceu violentamente, ao ouvir um estalido, por cima da cabeça, e ao ver sair um cuco de um relógio de parede, de maneira esculpida. O passaroco anunciou, em tom audível e firme, quase ameaçador: cu, cu! cu, cu! cu, cu! Depois desapareceu e a portinha fechou-se.

Sheila Webb esboçou um sorriso e contornou a ponta do sofá. De repente, porém, estacou, petrificada.

Estiraçado no chão estava o corpo de um homem, de olhos semicerrados e sem vida e com uma mancha escura e úmida na frente do fato cinzento-escuro.

A jovem baixou-se, quase maquinalmente, e tocou-lhe na cara e numa das mãos. Estavam ambas frias. Depois tocou na mancha úmida e retirou bruscamente a mão, de olhos desorbitados de horror.

No mesmo instante ouviu abrir a cancela e olhou, quase sem dar por isso, para a janela. Uma figura de mulher subia o carreiro, apressada. Sheila engoliu a custo a saliva, pois tinha a garganta ressequida. Sentia-se pregada ao chão, incapaz de se mexer ou gritar, de olhos fixos em frente.

A porta abriu-se e entrou uma mulher alta e idosa, com um saco de compras. Tinha cabelos grisalhos ondulados, penteados para trás, e olhos muito grandes e de um azul muito bonito, olhos que fitaram Sheila, mas não a viram.

A jovem soltou uma espécie de gemido abafado, os olhos azuis fitaram-na de novo e a mulher perguntou, vivamente:

- Está aí alguém?

- Es... está - gaguejou Sheila, enquanto a mulher se aproximava, depressa, das costas do sofá.

Depois gritou:

- Não... não! Pisa-o... pisa-o e ele está morto!
Agatha Christie
* Rosemary significa alecrim, em inglês, mas também é tomado na acepção de "recordação"

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