domingo, abril 18

Presidente de Portugal defende livros para combater desigualdade

Eu escrevia um texto em casa quando o telefone tocou: “Estou? Gian Amato? Aqui é Marcelo Rebelo de Sousa”. É trote. Imita direitinho, pensei por um segundo. Mas logo confirmei a autenticidade, porque só eu e o presidente saberíamos o assunto: livros.

Diante da proposta do governo brasileiro de voltar a taxar os livros no país e da proximidade do Dia Mundial do Livro, decidi escrever sobre a biblioteca pública de Celorico de Basto, que leva o nome do presidente.

Pedi ao assessor da Presidência, Ricardo Branco, informações sobre as 200 mil doações de Marcelo. Se o presidente pudesse dizer algo, melhor. No lugar do e-mail protocolar, Marcelo telefonou e deu entrevista exclusiva ao Portugal Giro.

- Venho responder sobre os livros enviados para Celorico de Basto, onde minha família tem raízes - começou Marcelo.

Biblioteca de Celorico de Basto, há 20 anos o município mais pobre de Portugal

Celorico de Basto é uma vila no Norte de Portugal, distrito de Braga. Tem 20 mil habitantes e 181 km2. Ali nasceu a avó Joaquina e virou a segunda casa do lisboeta Marcelo, que presidiu a Assembleia Municipal de 1997 a 2009. 

A vila era o município mais pobre de Portugal no início dos anos 2000. O índice de consumo era o mais baixo do país, com pontuação de 52,3 para um mínimo de 100.

Segundo dizem Marcelo, moradores e o prefeito, a biblioteca ajudou a tirar a vila do anonimato. E iniciar, lentamente, um capítulo de desenvolvimento. Já não é a mais pobre. 

- O objetivo era simples: Celorico de Basto era o município mais pobre de Portugal. Mais pobre que os mais pobres dos arquipélagos dos Açores e da Madeira e do Alentejo ou Beira Interior. Havia de encontrar onde apostar no desenvolvimento. Entendi que era, a longo prazo, na cultura e na educação - disse Marcelo.

A notícia do fim da isenção tributária sobre os livros no Brasil é um baque. E a justificativa da Receita Federal aumenta o drama: pobres não compram livros, argumenta o Fisco.

Então, como ter acesso, em qualquer lugar do mundo, a um objeto que já é caro para a maioria e não se encontra gratuitamente com facilidade?

- Há uma clivagem econômica e social muito acentuada. Quem tem dinheiro, tem mais dinheiro para comprar e acumular livros e lê mais. Filhos de pais com bibliotecas melhores leem mais e são educados para isso. Há quem compense através de bibliotecas públicas, mas devo dizer que é onde começa a desigualdade social: logo na família. Quem lê mais escreve mais e melhor. Marca o começo da vida. As escolas, sobretudo as públicas, têm o dever de corrigir essa desigualdade - explicou Marcelo, que é professor.

O Imposto sobre Valor Agregado (IVA) em Portugal tem três taxas: normal (23%), intermediária (13%) e reduzida (6%). Os livros estão inseridos na reduzida. Sendo que esta taxa nos Açores e na Madeira são de 4% e 5%. Com preços entre €10 e €23, não podem ser considerados tão baratos diante do salário mínimo de €665. 

Assim, Marcelo admite que só o desapego promove igualdade na cultura e educação. E faz um apelo para o Dia Mundial do Livro, em 23 de Abril:

-A melhor maneira de incentivar a leitura é através de gestos exemplares. Quem escreve, tem que escrever mais e tornar os livros que escreve mais acessíveis. Quem edita, tem que editar mais. Quem é proprietário e colecionador, no meu caso desde os 14 anos, tem que colocar os livros ao acesso de todos.

É o que Marcelo faz em Celorico de Basto há 19 anos. Vários volumes servem de suporte para a rede de educação municipal e estudantes de outras cidades que precisam consultar volumes e documentos.

-Convenci vários amigos escritores e professores, de Lisboa e do Porto, a fazerem o mesmo em suas terras de origem. Deu resultado. Foi uma forma de descentralização cultural. Oferecer a uma biblioteca de Lisboa seria desperdício, porque não teria o mesmo efeito social que teve naquele que era o município mais pobre e hoje não é mais. Já há uma dezena mais pobres - afirmou.

A biblioteca sozinha não tirou a vila da lanterna do ranking da pobreza. Mas serviu de palco. Ao decidir concorrer à Presidência em 2005, Marcelo apresentou sua candidatura no auditório da biblioteca, onde encerrou aquela campanha e também a da reeleição, em 2021.

A cidade ganhou notoriedade e tem trabalhado para melhorar a infraestrutura, atrair investimento e reter população. Depois da biblioteca, Marcelo apadrinhou uma feira do livro, que atraiu ao longo dos anos políticos, escritores, jornalistas, turistas e potenciais investidores.

-Embora apostasse em novos pólos industriais, que a vila não tinha, criou e foram crescendo, era mais importante, a prazo, a educação e a cultura. Nesse sentido, foi uma aposta crucial e que continuará, porque a biblioteca apoia as escolas - disse o presidente.

Marcelo comprava lotes inteiros com quatro mil volumes em leilões. Diz ter encontrado bibliotecas inteiras deixadas como heranças e que eram despedaçadas pelos herdeiros, diluindo o valor do espólio. Ele diz doar cerca de 200 livros por mês.

-Todo mês buscam o que vou concentrando em minha casa. No confinamento, com livrarias fechadas e atividade editorial parada, reduziu, mas a doação segue intensa - contou.

Marcelo preferiu doar a coleção a deixá-la como herança:

- Meu filho está vivendo no Brasil e trabalha pelo mundo. Tenho uma filha dedicada à ação social numa escola e em bairros vulneráveis. Nunca teriam casa para guardar a biblioteca, hoje isso não é mais possível. Só na primeira vez que doei foram 40 mil livros.

Até a biblioteca de Celorico teve que ser adaptada para a coleção.

- A primeira fase utilizava o velho casarão de um “brasileiro” (português que ia para o Brasil e depois voltava), do começo do século XX. Na segunda fase, houve alargamento com o novo núcleo, porque já era insuficiente. Na terceira fase, veio o auditório - disse.

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