quarta-feira, outubro 19

Os sem-idade

Devia ter uns 70, 75 anos. Sentado no ponto de ônibus, mirava um ponto fixo à frente. Não sei se enxergava a rua, os carros que passavam, ou algo que não éramos capazes de ver: uma festa, um otimismo, uma brincadeira de criança. Porque sorria. Sei que, sem nenhuma razão, levantou-se, ergueu o pé no ar, deu um chute no espaço, um tiro de meta sem bola, e o sorriso virou riso. Não sei se tinha 70, 75 anos; naquele momento, teve 8: o menino falou por ele, agiu por ele. Por um momento. Um lapso de meninice. Piscou o olho, fechou o sorriso e olhou em volta, para ver se alguém tinha reparado.

Então, há momentos em que a gente escapa da idade que tem. Deixamos de ter o que a identidade nos define e viramos uns sem-idade. Como se todos os espelhos do mundo se desfizessem, os documentos virassem pó, pegamos no chão uma pedra, maravilhados com seu peso e formato. Nem é preciso que estejamos velhos e meio senis: já constatei olhares distantes de um homem numa reunião, a olhar pela janela a si mesmo escalando uma árvore que não havia na paisagem.

É possível reparar em jovens executivas pulando uma corda imaginária no elevador, enquanto fingem acompanhar a passagem dos andares. Mulheres feitas olhando por alguns segundos uma joia na vitrine como se vissem uma borboleta muito colorida na beira de um açude, só acordando com a pergunta do vendedor: “Procurando algo em especial?”. Em geral, respondem “obrigada, só estava olhando”, caindo em si, quando o que queriam mesmo dizer era: “Ah, eu queria levar essa borboleta no dedo para mostrar pra minha mãe”.

Como os anjos, os sem-idade não têm sexo nem juntas enferrujadas, nem preocupações com a Receita Federal. Desenvolvem uma certa aversão a pentear os cabelos. Fogem do seu tempo por qualquer bobagem, espantados como aquilo pôde ser armazenado na memória. Com que propósito? Em que canto? O que acendeu essa lembrança de uma viagem à Bahia em 1982? As brincadeiras com o amigo que chamava Tico e que sumiu na vida? De que hipnose é capaz uma simples bexiga amarela contida pelo limite de um teto?

Um ou outro já se pegou titubeando ao preencher um questionário qualquer, diante do vendedor ou oficial que queria saber: “Idade?” Pois, dependendo do momento – em especial naquele em que um cachorro meio descabelado atravessa a rua correndo –, a resposta será “12”. E a bengala cairá no chão, assustando o cachorro e todos em volta. “Digo, 53”.

Um gesto impensado. Dois olhos faiscando por alguma bobagem. Um pulinho de poucos centímetros e muita ousadia. Um grito abafado de surpresa. Acompanhar por meio minuto o voo breve de uma galinha. Ficar triste por não reparar que anoiteceu. Evidências de que aí existiu por um átimo um sem-idade.

Eta vida poderosa que não sossega nem com as dores, os calos e os cabelos (os que sobraram) brancos.
Cássio Zanatta

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