sexta-feira, outubro 28

Pelada de barranco

Nada havia de mais prestante em nós senão a infância. O mundo começava ali. Nosso campo encostava na beira do rio. Um menino Guató chegava de canoa e embicavano barranco. Teria remado desde cedo para vir ocupar a posição de golquíper no Porto de Dona Emília Futebol Clube. Nosso valoroso time. As cercas laterais do campo
eram de cansanção. Espinheiro fechado pra ninguém botar defeito. Guató já trazia do barranco duas pedras para servir de balizas. Os craques desciam da cidade como formigas. José de Camos, nosso beque de espera também tinha a incumbência de soprar as bexigas. Porque a nossa bola
era de bexiga, que às vezes caiam no rio e as piranhas devoravam. E se caísse no cansanção os espinhos furavam. Nosso campinho  miúdo só permitia times de sete: O goleiro, um beque de espera, um beque de avanço e três na linha. Chambalé nosso técnico impunha regras: só pode mijar no rio e não pode jogar de botina. Sabastião era centroavante. Chutava no rumo certo. Sabia
as variações da bexiga no vento e botava no grau certo.
Quando alguém enfiava as unhas na pedra abria uma vaga.
Metade de nossos craques eram filhos de lavandeiras e
outra metade de pescadores. Na aba do campo a namorada
do Sabastião torcia: quebra esse saba, destina eles pras
piranhas. Mas Chambalé não deixava destinar. Quem destina
é Deusi – falava. No fim do jogo alguns iam bater bronha,
outros iam no mato jogar o mantimento e outros iam
pelotear passarinho. Guató pegava a canoa e remava até
a aldeia a mil metros dali. A cidade onde a gente morava
foi feita em cima de uma pedra branca enorme. E o rio
paraguaio, lá embaixo, corria com suas piranhas
e os seus camalotes.

Manoel de Barros, "Memórias Inventas – A segunda infância"

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