terça-feira, outubro 11

Sobre grades e véus

Recorro a uma imagem de infância para refletir sobre nossas visões de normalidade e anormalidade. Lá em casa, durante muitos anos, meu pai teve passarinhos em gaiolas. Cardeais, canários belgas, pintassilgos, pintagóis, canários da terra… Devo estar me esquecendo de alguns, é claro. Ele chegou a cultivar tenébrios, cujas larvas são um banquete para os pássaros carnívoros – as caixas ficavam na escada que descia para a garagem, onde um armário guardava os sacos de alpiste e painço. Investia boa parte do seu tempo livre cuidando dos bichos, trocando o papel na base da gaiola, renovando a comida e a água. Pelo carinho que testemunhava, nunca estranhei a condição de serem enjaulados.

Agora, ao perguntarmos para qualquer pessoa, seja velho, adulto ou criança, o que fazem os pássaros, “voam” será a primeira resposta para a maioria. Antes de pôr ovos, cantar, fazer ninho, comer sementes ou insetos, é notório que passarinhos voam. Até a galinha voa – muito mal, mas voa. Ok: menos as emas, avestruzes e, talvez, alguns poucos mais para servirem de exceção. O que me leva a pensar na violência que é aprisionar passarinhos: estamos tirando deles sua mais expressiva natureza, aquilo a definir sua existência. Mas eu não estranhava – era normal.

Iman Maleki

Pensava no assunto e no quanto algumas pessoas confundem o normal como sendo o certo, o anormal como o errado. Se por um lado não condeno meu pai por ter vivido na época em que capturar passarinhos para colocar em gaiolas não era nada de mais (ou seja, normal), teria muita dificuldade em achar correto armar uma arapuca para prender um cardeal que vimos outro dia numa caminhada pelo condomínio (por mais que o canto deste passarinho possa me recordar da infância). Muito antes de isso ser incomum nos dias de hoje, parece bem errado. Mas errado não teria sido em qualquer tempo?

Este é sempre o grande debate sobre as mudanças culturais: o que é normal muitas vezes pode ser completamente diferente de ser certo, ser justo ou incontestável. Cabem aí questões de costumes, de ecologia, de organização social e credos. Até leis precisam mudar – jamais deveríamos esquecer que ações de cunho segregacionista até pouco tempo eram amparadas pelo poder judiciário. No caso das outrora inocentes gaiolas, mesmo considerando bastante severa a punição para quem aprisiona animais silvestres, vejo como necessária: o bichinho não tem defesa.

A morte de uma moça no Irã após ser detida pela polícia de costumes por não usar o véu do modo adequado terá sido só uma andorinha? Os reflexos em forma de convulsão social parecem dizer que não.
Rubem Penz

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