sábado, novembro 18

Johnny Sete Luas

Apesar de nunca ter dito nada, e de usar sua necessidade de sono e de bons sonhos como desculpa, vovô Jake não gostava da caça ao porco das manhãs de domingo – não gostava nadinha. Ficava aborrecido pelo fato de Miúdo estar se tornando obcecado por matar o Cerra-Dente. Caçar era uma coisa, matar era outra, e a obsessão, de qualquer forma, era, ela experiência de vovô, altamente traiçoeira; não se pode nascer sem se soltar, e muito pouca gente conseguia soltar uma obsessão.

A constância do lampejo tenso e excitado nos olhos de Miúdo o perturbava. Abençoava Fup por acompanhar Miúdo, pois, apesar da impetuosidade, ela era lenta, e os dois juntos só cobriam cerca de um oitavo do território que Miúdo conseguiria cobrir se fosse sozinho ou com cachorros. No fundo do coração, vovô não queria que o Cerra-Dente fosse morto; acreditava piamente que ele era a reencarnação de seu velho amigo Johnny Sete Luas. Essa crença constantemente o surpreendia já que em geral afirmava que essa coisa de reencarnação era um monte de bosta de cavalo com dois metros de altura.

Johnny Sete Luas fora o único homem, além de vovô, a tomar uma dose do Velho Sussurro da Morte sem vacilar Vovô o encontrara pela primeira vez ogo depois de ter desistido do jogo em favor de uma vida mais estável e sossegada. Estava sentado na varanda de frente, experimentando sua quinta bagatela, quando viu um velho índio chegar e cruzar o quintal, usando um chapéu de cowboy bem surrado e uma espécie de cachecol preto, típico de sua gente. Apesar de nunca o ter visto antes, vovô Jake o reconheceu pelas histórias como sendo o Johnny Sete Luas, um velho índio pomo que perambulava pelas colinas do litoral, aparentemente sem ter casa ou fonte de renda. Segundo algumas histórias que tinha ouvido, Johnny Sete Luas tinha sido treinado como pajé antes de o esmagamento imposto pela civilização branca desintegrar os costumes tribais. Johnny Sete Luas era suspeito de ter sabotado amplamente as cercas e o equipamento pesado dos agricultores locais, e em geral não era bem-vindo na área. No entanto, sempre se falava nele com um estranho respeito – ele era polido e manso no falar, e o seu passado de xamã sugeria certos poderes… nada específico… só uma sensação.

Vovô sentira isso antes mesmo de Johnny Sete Luas chegar à varanda perguntando se podia trabalhar em troca de algo para beber, de preferência uísque. Sentaram-se na varanda e ficaram bebendo uísque por dois dias, e até a tardinha do terceiro. Vovô Jake o achou um excelente companheiro, pois durante todo esse tempo Johnny Sete Luas não emitiu uma palavra. Ficou sentado, tomando uns goles na garrafa, contemplando o dia, a noite, calmo e extremamente quieto.

Na terceira noite, ele deu uma respirada profunda, virou-se para Jake e disse:

– Deixa eu te contar sobre meu nome, Sete Luas. Acrescentei o Johnny quando o homem branco chegou, pois achei que soava jovem e sexy, mas não parecer ter ajudado muito. Agora eu acho ruim inventar nomes, mas o mantenho pra me lembrar que a gente precisar viver com os próprios erros. Recebi o meu nome, Sete Luas, quando fui treinado para pajé. Saí por aí, sozinho, procurando meu nome numa visão. Perambulei e procurei, sem comida, por três dias, uma semana. Não aconteceu nada. No sétimo dia, quando o sol tocou o mar, dei com um grupo de moças de outra aldeia, colhendo junco e bagas. Era uma noite morna de outono. Elas estavam acampadas ao longo de um pequeno córrego cozinhando um salmão gordo, e tinham um pão de bolota de carvalho e frutas silvestres. Você já reparou como a fome chega ao máximo quando se está bem perto de satisfazê-la? Eu me juntei a elas e comemos bem. Naquela noite, enquanto a lua cheia viajava pelo céu, fiz amor com cada uma delas, e com cada uma senti a lua cheia se queimando no meu corpo, uma luz grande, cor de pérola, explodindo na minha cabeça. Sete Moças. Sete Luas – fez uma pausa, sorrindo na penumbra. – Teu uísque… quatro luas, talvez cinco.

Desde essa primeira visita e até ele morrer, seis anos mais tarde, Johnny Sete Luas aparecia na casa de Jake mais ou menos a cada dois meses, e Jake, ao mesmo tempo em que gostava de sua silenciosa companhia, adorava suas raras elocuções. Sete Luas, por reverência ou desconfiança da linguagem, nunca falava muito, mas, quando o fazia, sempre dizia alguma coisa. Jake se lembrava de algumas vezes em particular. Uma vez, enquanto olhavam o sol se pôr no mar, Sete Luas dissera com o doce enfado do deslumbramento constante:

– Sabe, eu vi o sol se pôr 30 mil vezes e não consigo me lembrar de duas que tenham sido iguais. Que mais é possível desejar?

Numa outra vez, varreu a mão pela paisagem e disse:

– Arg, vocês brancos fizeram muito pra tirar isso da gente, mas nada pra merecer. Vocês querem domar tudo, mas, se ficassem quieto e sentissem por um momento, saberiam que tudo anseia por ser selvagem – deu uma cuspida – E tosa essa gente com cercas, cercas, cercas. Afinal, o âmago da questão não é se deixar nada dentro e nada fora? Mas sei que você compreende isso, Jake, porque você não tem cercas e dedica sua vida a fazer uísque e ficar sossegado, e essas atividades nobres que valorizam o espírito de um homem.

Essa declaração veio assombrar Jake quando Miúdo começou a construir as cercas. Mas quando Miúdo transformou a caça ao Cerra-Dente num ritual obsessivo, o que assombrava Jake até o fundo era a lembrança das palavras que Sete Luas lhe dissera da última vez.

Jake caminhara com ele até o topo da colina para se despedir e, pouco antes de partir, Sete Luas apontara para um pedaço de chão recentemente escavado, obra de um porco-do-mato, dando um sorriso estupendo:

– Ah, aí vemos alguma esperança; o domesticado se tornando selvagem. Os porcos são muito graciosos. Seus corpos são feitos para segurar o céu. Eu não me importaria de ser um porco, alguma vez… um velho porco, louco e grande. Seria ótimo.

Jim Dodge, "Fup"

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