quarta-feira, novembro 8

Meu amor pela leitura

Os anos da Rua Paraíba, 214 marcam um período intenso na minha vida. Meu amor pela leitura era tal que chegava a descurar dos estudos para me dedicar aos romances. Burlava com a maior facilidade a fiscalização de mamãe, que nesse ponto era bastante severa. Assim que me apanhei lendo em francês, nem ela nem meus irmãos (que só vieram a ler nessa língua algum tempo depois), puderam controlar minhas leituras. Após as aulas, aos domingos e feriados, passava inteiramente entregue à minha paixão: lia tudo que me caía sob os olhos, não havendo nada que me interessasse tanto, nem cinema, nem festas, nada. Os meus estudos de inglês, muito me serviam nesse particular. Tinha um professor que preferia conversar com mamãe sobre jardinagem e galinhas, sendo suas aulas de meia hora, no máximo, com exceção de quando papai se achava em casa. Para mamãe, entretanto, inglês era a matéria de que eu mais gostava e à qual mais me dedicava, isto não só porque o professor nos ajudava a tapeá-la, falando conosco na sua presença, aquelas frases de principiantes:”What is this?“, “Where is the door?”, “How are you?“, “What is the matter with you?” e outras da mesma categoria, como também entre os compêndios adotados por ele havia um, o Inglês sem Mestre, que me auxiliava a mistificá-la. Era um livro de tamanho bem maior do que o comum de estudo, capa dura, marrom. Metia dentro o romance que lia no momento e passava o dia com ele aberto ostensivamente, fingindo que preparava as lições para o dia seguinte. À noite, enquanto ela conversava com as irmãs, sentadas ao redor da mesa da sala de jantar, lá estava eu, absorta no estudo, pensava ela. De vez em quando, porém, reclamava:

— Helena, não sei que estudo é esse seu, ouvindo conversa ao mesmo tempo, assim não pode aprender.

Não respondia nada, mergulhada que estava na leitura apaixonante, de onde nem um tiro de canhão me arrancaria. Quando, porém, as reclamações se amiudavam muito, abandonava a sala, indo para o meu quarto.

Dias havia, entretanto, em que, receosa de que acabasse desconfiando da minha grande dedicação ao estudo de inglês, mudava de tática. Despedia-me dizendo que ia à casa de vovó, trancava a porta do meu quarto (cada um de nós tinha o seu naquele casarão), saindo pela porta da frente. Assim que transpunha o portão de ferro, parava uns passos adiante e, depois de alguns minutos de espera, voltava de manso, inspecionando o corredor da entrada para ver se tinha alguém e, se não, entrava rápida, pulava a janela do meu quarto, que deixara aberta de propósito. Metia-me debaixo da cama e ali passava o dia lendo romances, na maior felicidade, apesar dos sobressaltos e a despeito da posição incômoda, deitada de costas. De vez em quando, mamãe, na sua faina de dona de casa caprichosa, vinha varrer e catar as folhas secas que poderiam ter caído nos vasos de begônia que se alinhavam ao longo da entrada.

Ouvia, com o coração batendo, o ruído dos seus chinelos, pra lá pra cá, a vassoura de palha varrendo, louca de medo que me descobrisse. Mas nunca acontecia: continuava seu trabalho, longe de suspeitar que me achava ali bem perto. As horas passavam na maior rapidez e eu lia, lia, completamente esquecida do mundo e da realidade, vivendo apenas aquilo que o livro contava.

À hora do jantar saía de debaixo da cama, pulava de novo a janela e entrava pela porta da frente como se estivesse chegando naquele momento da casa de vovó. Deitada debaixo da cama, com luz insuficiente, os braços cansados de manter o livro à altura dos olhos, lia toda uma enfiada de livros a mais disparatada possível: Capitain, Pardaillan, Fausta Vencida de Miguel Zevacco, O Piano de Clara, O Violino do Diabo, Anjos da Terra, de Perez Escrich, Memórias de um Médico, Visconde de Bragelone, Vinte Anos Depois, Conde de Montecristo, de Alexandre Dumas, quase tudo de Júlio Verne, todos os fascículos de Sherlock Holmes, Nick Carter e Arsène Lupin e os primeiros romances de Paul Bourget, em grande moda da Bibliotèque de Ma Fille, a Filha do Diretor do Circo, que me pôs triste muitos dias, tudo misturado com Recordações da Casa dos Mortos, Le Crime de Sylvestre Bonnard, Le Lys Rouge, Crime e Castigo e muita coisa de que não me lembro. Mas não havia livro que chegasse para a minha enorme sede. Como não tinha dinheiro para comprar, recorria às colegas do colégio, lia escondido os do meu tio e o vendeiro vizinho nos emprestava alguns: O Judeu Errante, de Eugênio Sue e vários fascículos dos Dramas do Novo Mundo de Gustavo Aymard, além de alguns de Escrich. Siô Mané e Siô Chico, além de nossos fornecedores de gêneros, contribuíam também para o nosso desenvolvimento intelectual. Quando não havia outra fonte onde buscar, lá ia atrás deles , que sempre desencavavam algum velho romance de Escrich o façanhas de índios americanos. Outro meio de arranjar eram os amigos de Dauto, sendo necessário, porém, que lhe pagasse quatrocentos réis para comprar cocada baiana na venda de Zé Miliano, botequineiro da esquina da rua. Como pagamento era sempre adiantado, passava antes pela venda, comprava as cocadas e depois então ia em busca de Caio Líbano ou outro que tivesse livros. Em casa, esperava impaciente, chegando à calçada de minuto em minuto para ver se ele aparecia na esquina. Mas, qual, as horas passavam e nada. Já sabia, era só procurá-lo no quintal e encontrava-o trepado no mais alto galho do , pois abacateiro. Tinha conseguido entrar num dos momentos em que estava no interior e subira na árvore para se livrar de mim. Não podia atingi-lo, pois não tinha coragem de subir tão alto. Embaixo, pedia, chorava, ameaçava e ele, nada.

Só descia depois que tinha acabado de ler o livro que eu tinha pago para que buscasse pra mim. Mas não me corrigia: era só faltar leitura e me deixava seduzir pelas suas promessas de que daquela vez procederia diferente.
Maria Helena Cardoso, "Por onde andou meu coração"

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