quarta-feira, novembro 22

Papai

Em primeiro lugar, ele me falou longamente e protetoramente – como todos me falam… – acerca das responsabilidades que me foram transmitidas pelo nome que herdei… E em seguida perguntou-me:

– Com que idade morreu seu pai?

– 51 anos…

Meneando a cabeça, o seu comentário foi como de toda gente:

– Como morreu cedo!

Eu contestei:

– Não, como morreu tarde!

Ele, de certo, não me compreendeu.

Sorriu.

“As minhas blagues!”…

Mas a verdade é que ele morreu tarde: muito tarde!

Como, ali, novamente, acabara de ouvir a enumeração da sua Glória, novamente me lembrei de tudo…

Meu Pai devia ter morrido 17 anos antes. Já houve quem o dissesse… O falecido João Marques, se não me engano… Eu concordo.

Devia ter morrido em 88, no estrépito, no clangor, na ilusão da sua Glória. E assim talvez tivesse levado da Glória, talvez tivesse levado da vida uma ideia menos amarga.

Não morreu.

E a vida continuou…

E a vida é feroz!

Antes de tudo, a sua eloquência.

Pobre eloquência!

O gesto com que arrebatara a multidão no dia 13 de Maio, ajoelhando-se aos pés de Isabel (a Redentora) em nome da raça que ela acabava de libertar – e que era a nossa –, esse mesmo gesto passou a ser na sua vida um libelo. Era um “escravo do trono”… Trocadilhisticamente se tornou o “preto-cínico”, o “vira-casaca”, o “Chalaça” e, até agora, nas notas explicativas da antologia do piedoso Laet – “um jornalista que enveredava frequentemente pela calúnia”…

O menos que lhe sucedeu – porque era expansivo, tropical, ruidoso – foi ter um vulgo, como tipos da rua: Zé do Pato.

E os anos foram passando…

Mudaram os tempos.

Em novecentos e tantos, já sem a “Cidade do Rio”, o seu jornal, que muita gente tinha comparado a “uma Força desencadeada na vida nacional!” –, fazendo um discurso a Santos Dumont no Teatro Lírico, foi acometido da sua primeira hemoptise.

Caiu-me nos braços como um cedro ferido pelo raio (conforme se dizia em 1830…).

Foi para a cama.

Aneurisma.

Cirrose…

Trinta anos de romantismo, ideais, vinho do Porto…

E nem um níquel!

João de Souza Lage (Deus lhe fale na alma!) encomendara-lhe, quase por caridade, um artigo semanal para “O país”. Salvador Santos, nas mesmas condições, uma crônica humorística (humorística!) para “A notícia”. Foram as derradeiras mãos que o ampararam. E aquilo era quanto tinha para viver e sustentar a família. E também era tudo o que lhe restava da Glória…

Então começou a agonia.

Dois anos!

Vegetamos pelos subúrbios. Durante meses moramos num barracão, onde o vento assoviava pela frincha das tábuas.

Às vezes não havia com que mandar aviar as receitas do seu médico.

Foi quando comecei a cometer estelionatos: escrevia artigos, assinava o seu nome, levava-os ao Lage, ou ao Salvador, para que houvesse quatro vinténs em casa…

E de todos os seus discípulos, de todos aqueles que o rodeavam, e nos chamavam, em outros tempos, a ele e a mim, os “nossos Dumas”, nunca mais um único se abeirou do seu leito de agonia…

Minto!

Em dois anos, o romancista Coelho Neto foi visitá-lo uma vez. Era seu afilhado de casamento, e foi o melhor de todos.

Ele se comoveu com a visita. Contou-lhe tudo. E, ao voltar para a cidade, o conceituado escritor escreveu uma coisa tão comovedora sobre a nossa miséria que o homem da venda nos suspendeu o crédito.

A vida é assim…

Bilac também o foi ver: no dia seguinte ao dia em que ele morreu…

Nesse dia, chegaram juntos, lá aos confins do Engenho de Dentro, onde faleceu, o Poeta da Tarde e a Glória – que há tanto andava arredia.

Efetivamente, o Sr. J. J. Seabra, seu companheiro de desterro no Cucuí, seu amigo íntimo, nos dias prósperos, mas que, de certo por ser ministro, nessa outra época, nunca tivera tempo para indagar da sua saúde, conseguiu que o governo mandasse fazer-lhe o enterro.

Funerais de estado, com um coche de grande gala, cavalos cobertos de plumas negras, marcha fúnebre, embalsamento, crepe nos lampiões etc., etc., etc.

Seu corpo, durante quinze dias, esteve exposto numa igreja – “ao culto cívico do povo”. Entretanto, no oitavo dia que se seguiu à sua morte, nós desocupávamos a casa em que ele morrera, em virtude de um mandado de despejo…

Ele sabia, na hora da morte, que esse despejo estava iminente…

1888…

1905…

Morreu tarde, coitado, muito tarde!

É verdade que pouco importa a folha caída na corrente do rio que deriva por baixo da árvore…

A vida continuou…

Mas foi assim que eu comecei a conhecer a vida

José do Patrocínio Filho, "O homem que passa" (1927)

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