terça-feira, abril 2

A teimosia literária

Gabriel García Márquez — o próprio nome próprio dele dá prazer a escrever e, deixa cá regalar-me, dizer em voz alta — escreveu romances que casaram a imaginação dele com a realidade, a realidade dele com a nossa imaginação e, sobretudo, a imaginação dele com a nossa.

É o equivalente adulto dos contos infantis, o equivalente literário dos contos populares, o equivalente romântico das histórias nos jornais.

Escrevia muito bem, porque tinha um talento sem fim para encadear coisas que, no entendimento comezinho da separação de mundos, foram feitas para permanecer afastadas umas das outras.

Os romances dele estão cheios de vida, de amor, de humor, de aventura, de surpresas, de inteligência, de divertimento, de humanidade, de calor, de ilusões, de desejos e de encantamentos, e de reconciliações de sonhos com realidades.

Não fica nada de fora.


Ele deixa-nos escolher os romances dele de que gostamos. Escreveu para todos os gostos, porque tinha todos os gostos dentro dele. E escreveu para todas as idades, porque ia transportando todas as idades com ele, abraçando as mais avançadas com a paixão com que tinha abraçado as mais energéticas.

Fico danado com o coro de carpideiras que tem acolhido o último romance dele, "Em agosto nos vemos".

Não me interessam nada as circunstâncias, que têm sido usadas para o atacar selvaticamente. García Márquez começou a escrevê-lo com 70 anos e desistiu dele aos 77 anos, dizendo que a demência o impedia de o ter todo presente na cabeça, enquanto escrevia. Dez anos depois, em 2014, morreu, deixando instruções para não publicar o romance.

Os filhos decidiram desobedecer. E ainda bem: o romance incompleto de García Márquez é um esforço literário maravilhoso, feito contra todos os conselhos e confortos. É a última obra de um escritor genial que não podia não escrever.

É incontestavelmente um García Márquez: um fracasso à altura dele e da coragem dele.

Faz dar mais valor ainda aos outros romances dele.

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