quinta-feira, abril 11

Mundo cheio de loucos e perversos

Em Adis-Abeba conheci dois irmãos siameses que tocavam piano a quatro mãos. Quando um deles morreu, o outro teve que ser enterrado junto, embora protestasse inocência e fosse noivo de uma moça que o amava relativamente. O imperador foi visitá-los na câmara ardente, onde um estava morto e o outro ainda estava vivo, e foi lá, entre oito círios ao invés de quatro, que fui apresentado ao imperador da Etiópia, que me saudou com gentil reverência.

Esse imperador abissínio, aliás, foi quem me nomeou governador de Marrar pelo espaço de 12 meses — levado, talvez pela minha cor etíope e por uma falsa carteira de identidade que lhe apresentei e que roubara a um pobre mendigo por mim assassinado numa rua de Gondar —; e, findo aquele prazo, eu estava mais rico do que o próprio imperador e todo o seu império, dado o negócio de armas em que me meti e que me valeu a excomunhão do Papa.

Indo em peregrinação a Meca, para escapar à sanha de Sua Majestade, tive que atravessar às pressas o não sei por que chamado mar Vermelho que me pareceu tão azul quanto o mar Negro ou o mar Amarelo, e onde fui despojado em parte de minha fabulosíssima fortuna por um empregado infiel e sem escrúpulos, que se atirou às águas e nadou como um raio em direção ao golfo de Aden. De Meca transportei-me, puro já de alma, para a próspera cidade de Medina, onde comprei metade da Arábia a um alto membro do governo que depois vim a saber ser tão árabe e tão membro do governo quanto eu mesmo, com a agravante de ser um refinado vigarista. Reduzido a 15 milhões de arabescos, fugi de bicicleta para Damasco, onde apanhei o tifo e depois me tornei amante teúdo e manteúdo de uma alta dama afegã, cujo marido era cego e ali se achava justamente em tratamento da vista. Em Cabul, aonde fui ter alguns meses depois, levado pelas mãos generosas de minha protetora e de seu infortunado esposo, dediquei-me por algum tempo a altas indagações filosóficas de natureza moral, que resultaram no meu famoso Tratado da desesperação metafísica, traduzido para vários idiomas e que em francês pode ser encontrado em edições NRF (320 págs. — 1.280 frs.) com prefácio de Georges Duhamel. Tendo sido meu rico protetor morto numa infame emboscada em que a princípio se suspeitou de minha participação, passei a morar com a poderosa viúva e mais seus sete filhos, que logo ficaram reduzidos a cinco e pouco depois a três e a dois, devido a uma estranha epidemia de gastroenterite que grassou nas imediações de nosso palácio. Com a perda final de seus dois últimos filhinhos, um dos quais era também meu, e que foram encontrados afogados numa piscina que existia aos fundos do nosso jardim, a pobre mãe entregou-se a toda sorte de desespero e acabou por matar-se numa noite de tempestade, com um tiro do meu revólver que lhe acertou bem no meio da nuca. Feito herdeiro universal de todos os bens do casal, graças à lábia de um advogado que ficou com a metade da herança, pude viver principescamente durante mais de três anos, até que rebentou a guerra entre o Paquistão e o Afeganistão e que me reduziu, do dia para a noite, à mais extrema pobreza.

Fui acolhido como refugiado político pelo ex-rei Farouk do Egito, que a esse tempo ainda era magro e se comportava como um segundo Luís II da Baviera, apenas com algumas mulheres a mais e um pouco menos de filosofia dentro do cérebro. No Cairo, onde estive como hóspede oficial de Sua Majestade durante mais de ano, dediquei-me à nobre arte do dolce far niente, que não excluía, é bem de ver, algumas pesquisas de ordem estritamente secreta sobre a vida particular do rei e sobretudo de seus áulicos mais influentes, e que me seriam no futuro de grande proveito para casos de pequenas chantagens ou intrigas políticas inevitáveis numa Corte que se preza. Agraciado com a Grã-Cruz da Ordem dos Faraós Atônitos e com a Comenda (1° Grau) do dervixe Abdula, pouco depois era escorraçado do país por haver-me prestado num momento de fraqueza a serviços de espionagem a favor da Inglaterra, como pode ser lido e relido no capítulo XVIII das Memórias do Sr. Winston Churchill. Deportado para a Groenlândia num cargueiro que transportava vinte toneladas de alfinetes de cabeça e um pequeno elefante, ali vivi sucessivamente em Angmagssalik, Sukkertoppen, Holsteinborg, Scoresbysund, Upernivik, Christianshaab, Umanak, Godthaab e Jakobshav, sendo que nesta última cidade quase fui morto a arpão por uma jovem esquimó de raríssima beleza e que não queria conformar-se com a minha anunciada partida para Toronto, no Canadá, onde afinal se condoerá de minha sorte e mandara chamar-me um velho membro de minha família, cujo nome no momento não vem ao caso, mesmo porque morreu logo depois que ali cheguei, torpemente envenenado ao que dizem.

Com o dinheiro herdado desse prestimoso parente comprei-lhe um rico túmulo e tratei de pôr-me ao largo o mais breve possível, indo dar com os costados no Estado de Pennsylvania (EUA), em cuja capital, Pittsburg, mais uma vez me naturalizei norte-americano e consegui viver tranquilo por um longo tempo, dado o meu gênio cordato e cheio de delicadezas. Autor de inúmeros best-sellers, todos publicados em edições pocket-book e magnificamente condensados para o Reader’s Digest, granjeei em menos de um ano uma reputação literária só comparável, na época, à de um Ernest Hemingway ou à de um Leslie Charteris, o que me propiciou contribuir para o rápido enriquecimento do país através do imposto de renda. Datam dessa época minhas trinta e seis novelas policiais mais famosas, bem como os quatorze romances que Hollywood aproveitou para algumas de suas produções mais significativas, muitas delas em technicolor e com som estereofônico. Reduzido à mais extrema penúria pelo fisco implacável, para o qual contribuía com 200% sobre o que honestamente ganhava, abandonei a literatura e entreguei-me à traficância de tóxicos e à prática ostensiva do lenocínio, o que me valeu em pouco tempo uma cadeira de deputado pelo Estado de Minnesota e as consequentes imunidades parlamentares e extraparlamentares, que de mim fizeram um dos homens mais poderosos da democracia norte-americana. Não fora a perseguição tenaz que me moveu um de meus rivais mais perigosos, John Dillinger III, com ameaças inclusive à minha integridade física, e certamente eu teria feito da grande república do Norte a minha pátria definitiva neste planeta, sem nunca ter pensado em arrumar as malas de novo e enfrentar mais uma vez as incertezas deste mundo tão cheio de loucos e perversos, como acabei fazendo em meados de setembro de 1953.

Campos de Carvalho, "A Lua Vem da Ásia"

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