terça-feira, março 24

O hipócrita e o santo de Hipona



O hipócrita, este ser de elegância, onde anda? Este que até um poeta já louvou por seus escrúpulos? “À saúde do hipócrita”! À saúde deste que torna tudo tão mais tolerável. É fácil demais apontar os de cloaca exposta, o dedo apontando é um muito antigo tentáculo de polvo revoltado, excitado, sedento de justiça. Caguete seu próximo e tenha sua pena reduzida. O hipócrita? O hipócrita não se emporcalha. O hipócrita faz questão de manter as mãos bem limpas. Nada de pontas soltas, traço de baba, sobra de festinha amanhecida. A sujeira flagrante o escandaliza. Questão de etiqueta, de postura, de barras bem cosidas. O hipócrita sabe dar o passo sem rastro, tem o asseio e a honra de continuar uma linhagem de hipócritas avoengos, agradáveis e corretos até o mais fino cabelo das aparências. Questão de decoro, siso, brio. O mau gosto da verdade deformando o rosto ou do sangue escapando da veia não é com ele. O hipócrita não hesita em público, não tem nada de errado a olho nu, nada da paixão daquele santo que admitia ter se empanturrado, se esbaldado, se lambuzado em conveniências, mais falso na sua alegria que um mendigo bêbado num bairro de Milão no quarto século depois de Cristo. Ele hipócrita não peca em público, não peca absolutamente, nada nele o denuncia, nunca nada nele é torpeza. Até a expressão de um monge sequestrado, que chama seu assassino de amigo do último instante, na boca do hipócrita perde seu travo patético. Ele sabe ser sem dor o amigo do último instante, ironicamente. E o santo? Este santo que é santo sendo um pecador confesso, onde anda esse indecente?

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