quarta-feira, março 18

'De bibliotheca' - a minha primeira biblioteca

O título vai entre aspas, assim mesmo, em la­tim, porque não é meu: é o título de um pe­queno livro que recebi de Umberto Eco, um pequeno tratado sobre bibliotecas. Como ele, tenho conhecido algumas bibliotecas. A palavra como todos sabem é grega – de biblos -livro, e theke - armário e, pois, significa "armário de livros". Talvez fosse melhor chamá-Ias de bibliodaimos - armá­rios dos demônios.

A primeira biblioteca que freqüentei não era pública nem particular: era a biblioteca monástica do convento em que me for­mei, com livros guardados em severos armários holan­deses de pinho de riga. Al­gumas prateleiras eram trancadas a chave e seu acesso era proibido aos consultantes comuns. Essa parte da biblioteca era ofi­cialmente denominada in­ferno pelos padres profes­sores. Guardava os livros cuja leitura podia constituir pecado mortal.

Parti para a depravação de possuir a minha pró­pria biblioteca: já tinha uns 600 livros aos 18 anos, quando a polícia do Estado Novo me seqüestrou e me roubou a biblioteca inteira. Reincidi. Aos 25 anos tinha de novo, duramente comprados, às vezes docemente furtados, uns 1500 livros, na maioria edições francesas, alemãs, italianas, es­panholas. A polícia também reincidiu. Levou, inclusive, uma lista de livros que eu encomen­dara, onde constavam os nomes de Nietzsche, Holderlin e Gôngora. Fui torturado uma noite inteira no DOPS, com a presença de um coro­nel enfurecido, que me exigia o endereço de Nietzche, de Holderlin e de Gôngora. Eu não sabia. Posto em liberdade, tomei a providência, por segurança, de me informarem que cemitério estão enterrados aqueles delinqüentes. Até visitei seus túmulos. Nunca se sabe. Posso ser preso de novo e escaparei da tortura delatando esses cúmplices em suas covas perigosas, mas isso também é outra história.

A biblioteca foi, assim, para mim, a árvore da ciência do bem e do mal. Filho de Eva, a tentação do saber tam­bém me perdeu para sem­pre como ao imprudente casal do paraíso terrestre. Depois, me encontrei com Mallarmé: Ia chair est triste - helàs! - et j' ai lu tous les livres. Perdido no mundo, minhas primei­ras incursões pecaminosas na grande cidade foram à biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura, a uma outra na Avenida Rio Bran­co, que não existe mais, e que acho que era do Liceu de Artes e Ofícios. E, naturalmente, ao palácio babilônico da Biblioteca Nacional, onde minha primeira aventura foram as odes de Anacreonte em grego. Ainda hoje sei algu­mas delas de cor.

Gerardo Mello Mourão (Folha Proler, setembro de 1999)

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