sexta-feira, fevereiro 3

A minha casa

A casa da minha infância foi um «monte» alentejano, próximo do rio Ardila, a cerca de quatro quilómetros da branca cidade de Moura.

A frontaria dava para um pátio empedrado, de onde ainda se vêem, num alto, a eira, e mais perto, outras construções: a habitação do feitor, a cavalariça, a vacaria, o galinheiro, o curral dos porcos, o alpendre onde guardavam o trem, o churrião e vários carros de lavoura e alfaias agrícolas, a charrua, a debulhadora, o trilho...


A toda a volta da casa mansas oliveiras, quase cinzentas por tempo fosco, mas de prata quando o sol se mostra. E, quase encostada à casa, as olaias, muito visitadas pelos pardais sobretudo à noitinha, e a suave glicínia, trepando por uma parede caiada, junto a janelas de grega do quarto dos meus pais.

Foi nesse cenário rústico, que de Inverno acordava muitas vezes branco de geada e onde a Primavera vinha cedo, de ouro e azul, sobre a verde germinação das searas, que decorreram os anos mágicos da minha infância, escutando os cantos e os dizeres dos camponeses, brincando com os pastorinhos das ovelhas e das vacas, galopando pelos montados do outro lado do rio, escalando cabeços cobertos de estevas e mistério, descobrindo os caminhos que levam ao Guadiana, a imensa herdade da Rola, aos longes de Espanha.

Entre a catequização da minha professora, a D. Guilherminha, piedosa senhora docemente ridícula no seu outono de vida cheio de folhos, fitas e sonhos gorados, e a rebeldia franca dos trabalhadores ranchos, que pelo nosso «monte» passavam, vindos da Amieira e de Portel, comecei a tactear a vida, a dar pela injustiças sociais mesmo ao meu lado, a crescer entre cheiros e sons, visões, bem diferentes, mas misturados, do paraíso e do inferno.

Sentimentos em guerra nasciam dentro de mim e aos meus momentos contemplativos do fim do dia, após as horas de estudo ou os passeios pela beira do Ardila, a pé ou a cavalo, sucediam-se interrogações sem resposta. Deixara de acreditar nos mitos cristãos e procurava outras crenças, outros valores. Era o fim da minha infância, na altura em que meu pai ia ter de hipotecar a herdade (salvando-se anos depois do descalabro) e nós já víamos pela frente a partida para Lisboa, o Liceu, o «exílio» entrecortado por breves férias no Alentejo.
Urbano Tavares Rodrigues

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