sábado, abril 27

Assim começa o livro...

No início de julho, ao entardecer, sob um calor intenso, um jovem saiu do cubículo que sublocava na travessa S. e, lentamente, como se estivesse indeciso, seguiu pela rua na direção da ponte K.

Por sorte, escapou de encontrar sua senhoria na escada. Seu cubículo ficava logo abaixo do telhado de um prédio alto de cinco andares e mais parecia um armário do que um apartamento. A senhoria de quem ele alugava o cubículo, com direito a almoço e arrumadeira, morava um andar abaixo, num apartamento individual, e, toda vez que ele descia para a rua, não podia deixar de passar na frente da porta da cozinha da senhoria, quase sempre aberta para os degraus da escada. E, toda vez que passava ali, o jovem experimentava uma espécie de sensação mórbida e acovardada, que lhe dava vergonha e deixava seu rosto contraído. Ele estava atolado em dívidas com a senhoria e temia encontrá-la.

Não que fosse tão covarde e intimidado: muito pelo contrário; porém já fazia algum tempo que andava num estado de tensão e irritabilidade semelhante à hipocondria. Mergulhava em si mesmo e se isolava de todos a tal ponto que temia encontrar qualquer pessoa, não só a senhoria. Vivia esmagado pela pobreza; mas ultimamente até a situação de penúria tinha deixado de ser um peso. Não cuidava mais das questões do dia a dia e não queria estudar. No fundo, não tinha medo de senhoria nenhuma, muito menos do que ela pudesse estar tramando contra ele. Mas parar na escada, escutar uma porção de absurdos sobre todas aquelas futilidades vergonhosas, com as quais ele nada tinha a ver, todas aquelas impertinências sobre pagamentos, ameaças, reclamações, e ainda ter, ele mesmo, de desconversar, se esquivar, se desculpar, mentir — não, isso não, era melhor esgueirar-se pela escada como um gato e escapulir sorrateiro, para que ninguém o visse.

No entanto, dessa vez, ao sair para a rua, até ele ficou espantado com seu medo de encontrar a credora.

“Estou querendo me meter numa história dessas e, ao mesmo tempo, tenho medo de bobagens assim!”, pensou, com um sorriso estranho. — “Hum… sim… tudo está ao alcance das mãos do homem, mas ele deixa tudo escapar debaixo de seu nariz, pura e simplesmente por covardia… isso já é um axioma… Curioso, o que é que as pessoas mais temem? Um novo passo, uma palavra nova e própria, é isso que elas temem acima de tudo… De resto, já estou tagarelando demais. É porque fico tagarelando que não faço nada. Aliás, pode ser também assim: é porque não faço nada que fico tagarelando. Foi no último mês que aprendi a tagarelar, deitado dias inteiros no meu canto, pensando… com a cabeça nas nuvens. E então, agora, eu estou andando para fazer o quê? Será que sou capaz disso? Será que isso é a sério? Não tem nada de sério. É uma fantasia que eu mesmo inventei; uma brincadeira! Sim, na certa não passa de uma brincadeira!”

Na rua, fazia um calor tremendo, além do clima abafado, da multidão e, por todo lado, havia a cal, a madeira, os tijolos, a poeira e aquele mau cheiro peculiar do verão, tão conhecido de todos os moradores de Petersburgo que não têm condições de alugar uma casa de veraneio — tudo isso junto, e tudo ao mesmo tempo, afetava de modo detestável os nervos do jovem, já tão abalados desde antes. O mau cheiro insuportável das tabernas, que naquela parte da cidade são especialmente numerosas, e os bêbados, que passavam toda hora, apesar de ser dia útil, rematavam o colorido triste e repulsivo do quadro. O sentimento da mais profunda repugnância faiscou por um instante nas feições finas do jovem. Aliás, ele era extraordinariamente bonito, com lindos olhos escuros, cabelo castanho-escuro, estatura acima da mediana, magro e esbelto. No entanto, logo caiu numa compenetração profunda, ou, melhor dizendo, numa espécie de alheamento, caminhava já sem perceber aquilo que o rodeava e chegava até a não ter vontade de perceber nada. Apenas de vez em quando murmurava alguma coisa para si, por força de seu costume de falar em monólogos, costume que agora, no íntimo, ele admitia existir. No mesmo instante, tomou consciência de que seus pensamentos às vezes se embaralhavam e de que ele estava muito fraco: fazia dois dias que não comia quase nada.

Estava tão malvestido que qualquer outra pessoa, mesmo habituada a roupas ruins, se envergonharia de sair à rua, de dia, em tais andrajos. No entanto, aquele bairro era do tipo em que é difícil encontrar alguém de terno. A proximidade da praça Sennaia, a abundância de certos estabelecimentos afamados e a população formada sobretudo de artesãos e operários, que se comprimiam naquelas ruas e travessas centrais de Petersburgo, de vez em quando coloriam o panorama geral com tais personagens que seria até estranho alguém se admirar de encontrar ali uma pessoa fora do comum. Porém na alma do jovem já se havia acumulado um desprezo tão cruel que, apesar de toda sua delicadeza, às vezes muito juvenil, aquilo que lhe dava menos vergonha era andar na rua em andrajos. Ao encontrar certos conhecidos ou antigos camaradas que ele não gostava nem um pouco de ver, a história era outra… Porém, quando um bêbado, que naquele momento estava sendo levado pela rua numa carroça enorme, não se sabia por que nem para onde, puxada por um imenso cavalo de tração, gritou para ele de repente, ao passar: “Ei, você aí, seu chapeleiro alemão!” — e berrou com toda a força, apontando para ele com a mão erguida —, o jovem parou de repente e, num gesto convulsivo, agarrou o chapéu. Era um chapéu alto, redondo, da marca Zimmerman [1], mas já muito surrado, todo encardido, cheio de buracos e manchas, sem abas, com o canto mais nojento caído para o lado. Porém o que o dominou não foi a vergonha e sim outro sentimento, semelhante a um susto.

“Eu já sabia!”, murmurou, confuso. “Eu bem que tinha pensado! Isso é que é pior! Porque aí vem uma bobagem qualquer, a besteira mais tola, e pode estragar o plano todo! Sim, o chapéu chama muito a atenção… É ridículo e por isso chama a atenção… Meus andrajos precisam mesmo é de um boné, nem que seja velho e igual a uma panqueca, e não esta aberração. Ninguém pode andar com isto, veem logo a uma versta [2] de distância, vão lembrar… isso é o principal, depois vão lembrar e pronto, é uma prova. Aqui, é preciso ser o mais discreto possível… Os detalhes, os detalhes são o principal!… São detalhes assim que podem estragar tudo, e de uma vez por todas…”

Ele não tinha de andar muito; sabia até quantos passos eram, do portão da sua casa até lá: exatamente setecentos e trinta. Certa vez, ele contou, muito perdido em devaneios. Naquela ocasião, ele mesmo ainda não acreditava naqueles sonhos e apenas se irritava com sua audácia hedionda, mas sedutora. Agora, um mês depois, estava começando a encarar a questão de outro modo e, apesar de todos os monólogos exasperantes sobre sua própria impotência e hesitação, de alguma forma, e até a contragosto, ele se habituou a considerar o sonho “hediondo” como um empreendimento, embora ele mesmo ainda não acreditasse naquilo. Agora, ele estava indo fazer um ensaio de seu empreendimento e, a cada passo, sua inquietação aumentava, se tornava mais forte.

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