segunda-feira, abril 15

Uma tarde, em Buenos Aires

Uma tarde em Buenos Aires eu estava meio triste – mas não bebi, não telefonei, não procurei nenhuma pessoa amiga. Fechado no meu capote e no meu silêncio, pus-me a andar pela rua cheia de gente. As grandes luzes só se acendem às dez da noite e, desde muito cedo, no inverno, é escuro. Há um poder nessa multidão que desfila pela penumbra como um rio grosso com seu murmúrio. Deixei-me ir pela Florida, dobrei talvez em Tucuman, subi até Suipacha, desemboquei em Corrientes, e eu era mais um homem de capote no meio da multidão, e a multidão me embalava e me fazia bem. E, por ser impessoal e não ter pressa nem rumo, por ter um capote e sapatos grossos e por andar entre meus desconhecidos irmãos, eu me senti mais livre. E cumpri os ritos da multidão, comprei meu jornal, tomei meu café, li o placar das últimas notícias, fiquei um instante distraído mirando os frangos que giravam se tostando numa rotisseria.


Quando voltava para meu hotel, por Florida, me lembrei do primeiro verso de um soneto que li há muito tempo, parece que de Alfonsina Storni, "lo encontré en una esquina de la calle Florida...". Fiquei com esse verso na cabeça, pensando vagamente que esse homem sem nome que alguém encontrou em uma esquina de "la calle Florida" podia ser eu, como podia ser milhões de outros, e tirei disso não sei que vago e particular consolo.

Não foi em uma esquina, mas foi ainda na Florida que encontrei alguém: era um casal de amigos brasileiros em lua de mel. Os dois estavam felizes, alegres deles mesmos e tudo o mais, falando do prazer das compras de lã e da carne soberba dos restaurantes. Estimei encontrá-los, e a felicidade do casal me fez bem, mas senti, com certa curiosidade, que no fundo de mim não havia a menor inveja. Ide-vos, noivos morenos, por Florida e Corrientes, ide-vos felizes por todos os caminhos da vida. Só vos invejarão os que também procuram ser felizes; minha longa tarefa é outra, é não ser infeliz e me proteger e guardar, ser forte dentro de mim, forte, quieto e sereno. Essa tarefa me distrai; e, vendo em vossos olhos a felicidade, eu descobri que em verdade não a procuro mais. Já passei por esse caminho; sobre minha cabeça, quando ia por ele, mais de uma árvore deixou cair flores. Não choro esse tempo; simplesmente ele passou. Assim vai passando a multidão, e dentro dela caminho outra vez, lentamente, distraído e tranquilo como um boi.
Rubem Braga

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